O “beijo gay” numa telenovela brasileira é um acontecimento tão esperado que recebeu essa nomeação há vários anos, muito antes de ter ocorrido. É justamente essa não-ocorrência o que marcou muitos discursos que já emergiram em torno desse tema.
As telenovelas brasileiras são conhecidas pela sua relação estreita com os temas que afetam a vida da população no país. Vista como uma crônica de nossas próprias vidas, as fronteiras entre ficção e realidade se diluem através dessas tramas ficcionais, e acreditamos nos enxergar a partir de suas personagens. Assim, ela carrega um duplo potencial: o de representar as pessoas que as vêem e o de interferir na forma como essas pessoas se vêem.
Em 1985, em Corpo a Corpo, Zezé Motta e Marcos Pauloformaram um casal interracial cujos beijos eram bastante mal aceitos pelo público. Não enxergando como legítima uma relação de afeto entre uma negra e um branco, a população, no entanto, foi obrigada a se deparar com essa possibilidade e encará-la.
Em 2005, um beijo entre dois homens foi gravado para a telenovela América, mas não chegou a ir ao ar, porque a direção da Rede Globo vetou a veiculação. Em 2010, nossa vizinha Argentina, exibiu, em Botineras, não só beijos, mas também cenas de sexo entre dois homens.
No mesmo ano, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais recebeu da Rede Globo um carta explicando o porquê da ausência de cenas de beijo gay em suas novelas. Ela argumentou ser necessário respeitar a parte do público que não tinha a expectativa de assistir a essas cenas. A emissora também defendeu que, diferente da questão da intolerância e da discriminação, as expressões da sexualidade seriam questões de caráter individual. Por fim, ela apontou duas cenas de sua teledramaturgia em que teria havido beijos gays: uma em que duas meninas dão um “selinho” durante uma peça de teatro, estando uma delas vestida como homem, e outra em que um amigo rouba um “selinho” do outro.
Em 2011, um beijo entre duas mulheres foi ao ar pela primeira vez numa telenovela brasileira, Amor e Revolução, do SBT, sem gerar muito estardalhaço. Mas a cena entre dois homens continuou a ser um tabu.
Foi nesse mesmo ano que o Supremo Tribunal Federal julgou a constitucionalidade da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça reverteu as uniões civis até então realizadas em casamentos civis.
Também em 2013, começou a ir ao ar Amor à Vida. A personagem gay Félix, que iniciou a trama como o vilão, ganhou a torcida do público devido a seu grande carisma, e se redimiu através da ajuda de outro gay, Niko. A emissora começou a receber telefonemas do público, pedindo para que os dois ficassem juntos. A revista IstoÉ dedicou uma matéria de capa à repercussão atingida pela personagem. A possibilidade de o beijo gay finalmente ocorrer virou pauta na imprensa especializada.
Nas vésperas do último capítulo, um “meme” da Internet ironizava uma cena de esfaqueamento exibida na novela, perguntando como isso poderia ser mais aceitável que uma cena de beijo gay. Várias celebridades, seguidas pelos internautas, iniciaram uma campanha enviando tweets para Walcyr Carrasco, autor da novela, com a hashtag #BeijaFélix. No programa Vídeo Show, na véspera do último capítulo, num “povo-fala” sobre as expectativas sobre o fim da trama, apareceu um senhor de idade se perguntando se o beijo entre as personagens iria sair. Saiu. E foi recebido com comemoração.
Mas se o acontecimento é o não esperado, o que nos surpreende, então como a questão do “beijo gay” pode, afinal, ser vista como um acontecimento? Ora, há algo no que presenciamos nas últimas semanas, a partir dessa questão, que se caracteriza como uma expressiva novidade: a mobilização do público e da crítica para que o “beijo gay” finalmente ocorresse. Se o público era antes apontado como o entrave, desta vez foi grande parte dele quem pressionou a emissora para que o “beijo gay” finalmente saísse. Além disso, por mais que a possibilidade estivesse colocada, a dúvida se manteve até o último momento.
E o que esse acontecimento nos dá a ver? Primeiramente, uma tendência de maior aceitação da homossexualidade por grande parte da população. Segundo, uma abstenção da maior produtora de telenovelas do país de interferir para modificar uma situação de não-aceitação da homoafetividade (de forma diferente de como já fez em outros momentos, com outras questões, como no caso dos relacionamentos interraciais). Por fim, esse acontecimento também nos confirma a importância da telenovela na vida das pessoas. Essa importância é vista na cobrança que o gênero sofre para representá-las da maneira desejada. Da mesma forma, foi novamente ressaltado o potencial da telenovela de evidenciar as tendências da população a partir das reações dela a suas tramas.
De qualquer forma, exibir uma cena de beijo entre dois homens no programa mais assistido da TV brasileira é, de fato, um ganho simbólico importante para a representação de homossexuais no país. Foi um beijo tímido, discreto, mas indubitavelmente um beijo. A partir dele, novas possibilidades se abrem: de ocorrerem beijos mais intensos entre duas personagens masculinas, de ocorrem beijos entre elas antes do último capítulo, de beijos entre homens passarem a ser vistos com maior naturalidade, e não como espetáculo de final de novela. Manoel Carlos, autor do próximo folhetim, já comentou a possibilidade de escrever uma cena de beijo entre duas personagens femininas.
Foto: Reprodução / TV Globo
Vanrochris Vieira
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisador do Gris/UFMG
Incrível em toda essa história, é pensar que seja necessário a ficção mostrar um beijo entre dois homens para as pessoas aceitarem que isso acontece. Coisas de uma sociedade dita moderna, com “eme” de moralista. De uma sociedade religiosa que prega o amor ao próximo, desde que ele não seja homossexual. De uma religiosidade imposta a custa do pecado, do interesse financeiro das igrejas e seus “santos” representantes. Viva o beijo! Viva o amor! Viva!