A análise aborda a morte do ator Domingos Montagner como fator que desencadeou um intenso debate sobre as alterações ambientais provocadas por desvios na natureza e pela construção de hidrelétricas no segundo país com maior quantidade de usinas. Problemas antes invisibilizados ganharam força e espaço midiático, trazendo à tona problemas bem mais profundos, ligados a uma exploração predatória da natureza.
A morte de Domingos Montagner, no dia 15 de setembro, impactou não somente pela morte do ator em si, afogado no rio São Francisco de forma semelhante à de seu personagem na novela Velho Chico, mas também por ter reacendido o debate em torno de problemas ambientais gerados por usinas hidrelétricas e visibilizado uma luta antiga de comunidades ribeirinhas, pouco comentada nos meios de comunicação.
Se um acontecimento é também ruptura, desencadeia novas possibilidades, tem um poder de afetação (FRANÇA, 2012), a morte do ator desestabilizou uma sociedade inteira (muito além dos fãs da novela) e trouxe à tona questionamentos sobre a ausência de sinalização em locais para banho às margens do rio e, sobretudo, quanto ao aumento da vazão do rio para produção de mais energia elétrica em Xingó (usina localizada a cerca de 2km do local onde Montagner se afogou).
A construção de hidrelétricas no Brasil sempre contou com movimentos de resistência e protestos, sistematicamente negligenciados pela mídia hegemônica. Inúmeras mortes durante e após a construção das usinas, alterações nos níveis da água, mudanças bruscas no cotidiano e na economia de populações ribeirinhas (que sobrevivem de pesca e outras atividades ligadas direta ou indiretamente aos rios e completamente alteradas): nada disso é colocado em pauta, diante da necessidade de geração de energia para alimentar o “país do futuro”. Enquanto isso afetava a base de nossa pirâmide econômica, não havia repercussão ou crítica nos meios de comunicação. Foi preciso que um ator global morresse no local para que a discussão fosse abordada de maneira séria.
Embora nada prove que a morte de Montagner tenha sido provocada pela variação do fluxo de água de Xingó, sabe-se que a mudança do volume por parte da usina interfere na velocidade da água, favorecendo uma correnteza mais forte e formando redemoinhos. A repercussão aumentou quando o site The Intercept Brasil trouxe dados que comprovavam uma alteração no rio São Francisco justamente no horário em que o ator estava nadando, entre 13h e 14h. Assim, sua morte deixou a conotação espiritual e passou a estar ligada às responsabilidades dos órgãos públicos estatais, a mudanças feitas na natureza que são criminosas e que prejudicam diversas comunidades invisibilizadas: dos barcos levados pela correnteza, à impossibilidade de fruição do rio e aos desequilíbrios na reprodução de peixes e outros animais.
O ator não foi o primeiro a morrer no local, mas o que era enquadrado como fruto de “imprudência” passou a ser considerado de forma ampla e contextualizada, implicando outros atores e instituições que teriam muito a explicar. Não é à toa que os dados da vazão informados pela hidrelétrica oscilaram consideravelmente no processo de apuração entre os dias 16 e 28 de setembro e que a CHESF ficou em silêncio diante de boa parte dos questionamentos que surgiram nos meios de comunicação. O silêncio institucional e os silenciamentos impostos às comunidades ribeirinhas talvez revelem mais do que os pronunciamentos da investigação iniciada com a morte de Domingos Montagner, porque falam de uma lógica de exploração pouco questionada.
Referência:
FRANÇA, Vera. O acontecimento e a mídia. Galáxia. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica. ISSN 1982-2553, n. 24, 2012.
Tamires Ferreira Coêlho
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social-UFMG
Pesquisadora do Gris
Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de outubro, definido em reunião do Grislab.