A análise explora as reações após o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, que segue sem respostas. As manifestações da sociedade civil, de celebridades e veículos internacionais dão a ver a extensão da indignação com o ocorrido, que expôs uma vez mais o racismo e o machismo latentes no país, além da violência.
Marielle Franco, vereadora PSOL/RJ, e Anderson Gomes, seu motorista, foram assassinados no dia 14 de março. Duas análises do GrisLab (abordando a cirurgia de Neymar e a intervenção militar no Rio) já abordaram, sob outros pontos de vista, o que aconteceu. Passadas duas semanas do crime brutal que chocou não só o país, como teve grande repercussão internacional, seguimos sem respostas: quem cometeu o crime? Quais as motivações?
A polícia investiga o caso e não descarta nenhuma linha investigativa, apesar de concordar que o crime tem características de execução premeditada. A falta de pronunciamentos abre espaço para especulação, e cresce a urgência por respostas. É a passagem que o historiador Michel Vovelle descreve nos seus três níveis da morte: a morte consumada, morte vivida e discurso sobre a morte. Os discursos coletivos sobre a morte “(…) de uma figura pública tem esse poder de revelação e atua[m] na elucidação do cenário social” (SIMOES, 2015, p.2). Após o arrebatamento e horror da experiência da morte de Marielle e Anderson, após o sepultamento e homenagens, seguiu-se uma onda de manifestações em várias cidades do país, cobrando justiça, investigação e a permanência da memória de ambos.
Marielle era negra, mulher, bissexual num relacionamento lésbico estável, cria da Maré, vereadora com a quinta maior votação no RJ, mãe de uma adolescente. Cada uma dessas características adiciona uma camada de sentido a sua morte. O fato de Marielle ter denunciado a violência policial no estado do Rio e ser contra a intervenção militar é outro ponto que importa. A comoção se deveu não só à brutalidade do acontecido (os tiros foram na cabeça e no pescoço, direcionados a ela; Anderson, de acordo com a polícia, não era alvo, assim como a assessora de Marielle que estava no carro e foi atingida por estilhaços), mas ao que a morte dos dois representou num cenário mais amplo.
A trajetória de Marielle é um exemplo de superação: apesar de todos os obstáculos impostos pelo status quo, ela conseguiu se graduar, fazer mestrado na área de administração pública, criar sua filha e prosperar na política institucional, sendo eleita com quantidade expressiva de votos. Era defensora dos direitos humanos, das minorias e se apresentava como resistência na Câmara do Rio. Ela representava a mudança pelas vias tradicionais, a renovação da política. E mesmo assim foi assassinada. Sua morte deixa um recado bem claro: não ousem. Não saiam da favela, não queiram mudar o que está estabelecido, não defendam ninguém, não lutem pelo coletivo e pelas minorias, não falem da polícia, não sejam negros e negras. Não sejam mulheres lésbicas. Permaneçam caladas/os.
A morte de Anderson, como uma consequência talvez não planejada, também deixa sua marca: trabalhador e pai de um bebê, estava cobrindo licença do motorista oficial de Marielle. Sua morte foi um acaso, uma confluência de fatores o levou a estar ali naquele momento e ser atingido pelos disparos. Nada pode reverter o acontecido, nem a esperança de justiça, mas sua morte expõe um dos lados mais cruéis da violência: a insignificância das vidas e dos corpos, quase descartáveis, numa guerra sem rosto e sem previsão de acabar.
Os discursos sobre essas mortes revelaram algumas facetas da sociedade, como o racismo, permanentemente negado no Brasil e que era pauta cara a Marielle, assim como o machismo que assola as mulheres, a violência desmedida no RJ que deixa um número inacreditável de mortes todo ano, o apagamento dos relacionamentos bissexuais e lésbicos nas narrativas jornalísticas hegemônicas e o alerta sobre os perigos de ser ativista por direitos humanos no Brasil.
Sem um desfecho no horizonte, seguimos falando sobre o acontecimento, reverberando a voz de Marielle e esperando por justiça.
Laura Lima
Mestra em Comunicação pela UFMG e pesquisadora do GrisLab