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O buraco é mais embaixo: o que a primeira foto de um buraco negro revelou

A primeira foto de um buraco negro já divulgada é um marco na história da ciência, revela a importância da colaboração no trabalho científico e o machismo estrutural que afeta a academia.

Foto: (Nasa/CXC/Villanova University/J.Neilsen)+Event Horizon Telescope)

Um acontecimento é apenas um fato? Apenas “ação ou coisa feita, ocorrida ou em processo de realização” ou “algo cuja existência pode ser constatada de modo indiscutível; verdade”? Se assim for, a primeira foto divulgada de um buraco negro, revelada em 10 de abril de 2019, já é um fato daqueles que marca a história. O trabalho de análise do Grislab (e de seus pesquisadores e colaboradores) desde 2013, entretanto, vai na direção de explorar os acontecimentos numa perspectiva hermenêutica, percebendo os sentidos acionados, os valores tensionados entre outros elementos para além do “fato”.

A foto do buraco negro – que na verdade não é bem uma foto no sentido tradicional; é uma justaposição de dados de vários telescópios e inteligência artificial – aconteceu graças ao trabalho colaborativo da Fundação Nacional de Ciências (National Science Foundation) no projeto Event Horizon Telescope (EHT) que recolheu “dados de oito telescópios alocados em diferentes partes do mundo”, analisou-as e através de programação de inteligência artificial, extrapolou esses dados, combinando-os na forma de imagem. Vemos a silhueta do buraco negro (o centro preto) rodeada pelo anel de luz, o horizonte de eventos. Esse horizonte de eventos é o ponto em que objetos chegam antes de serem engolidos pela força gravitacional do buraco. O buraco em si não pode ser capturado, pois não emite e nem reflete luz.

E por que isso é tão importante a ponto do  comissário europeu para Pesquisa e Inovação declarar que “a história da ciência será dividida entre o tempo antes de imagem e o tempo depois da imagem”?  Até hoje, 2019, só possuíamos representações “imaginadas” de um buraco negro, a partir de previsões de modelos da física e teorias incluindo a da relatividade de Einstein. Isso significa que podíamos imaginar como o buraco negro funcionaria na prática e desenhá-lo. É muito relevante que a imagem formada seja semelhante ao que se simulava porque valida o conhecimento produzido até o momento e incentiva novas teorias, além de permitir compreender melhor o fenômeno.

Além disso, é um exemplo prático da colaboração entre instituições científicas de vários países e de muitas pessoas diferentes (a equipe contou com mais de 200 cientistas), que chama atenção para importância da ciência e da interdisciplinaridade na sociedade – num momento de ataque, cortes e desvalorização das universidades, institutos de educação técnica, perseguição a professoras e professores no Brasil.
A comoção em torno da foto também revelou o machismo nas chamadas STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática na sigla em inglês) ou ciências exatas. A pesquisadora responsável pela equipe que trabalhava num dos algoritmos utilizados, Katie Bouman, foi bastante celebrada nas redes sociais e comparada a Margaret Hamilton, cientista da computação que fez parte da equipe que ajudou na primeira expedição à Lua. Mas recebeu uma chuva de ataques machistas. A quantidade de mulheres que conseguem entrar e permanecer na carreira nas ciências exatas é muito inferior à de homens, especialmente em projetos de relevância e cargos de direção. A divulgação da imagem de Katie (e de outras mulheres que compuseram o time) feliz com os resultados é um reforço na representatividade e um alento em tempos sombrios àquelas que pesquisam.

Laura Antônio Lima
Mestra em Comunicação Social pela UFMG



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