O feminicídio de Tatiane Spitzner não é um caso atípico, mas sim um velho conhecido da mídia e da sociedade, violência letal que atinge as mulheres por serem mulheres.
Tatiana Spitzner. O nome da advogada encontrada morta no apartamento onde morava com o marido, Luís Felipe Manvailer, em Guarapuava, Paraná, é recorrente nas mais diversas mídias noticiosas que estão cobrindo o caso há cerca de um mês. Luís é suspeito de ter jogado a mulher do quarto andar do prédio, cujas câmeras de segurança registraram o desenrolar de uma cena anunciada como “muito forte” pela imprensa. No vídeo, é possível ver o marido agredindo Tatiane com tapas no rosto, puxões de cabelo, empurrões, enforcamentos, chutes… Tatiane tenta fugir para o elevador, mas antes que as portas fechem, Luís a alcança e a aperta contra a parede metálica . Quando chegam no térreo, mais uma vez ela tenta escapar, mas é puxada de volta por Luís. Ele faz com que ela desça no andar do lar do casal, que deveria ser um ambiente seguro. Quinze minutos depois, o circuito capta o corpo de Tatiane caindo no chão da rua e, logo em seguida, sendo recolhido por Manvailer, que ainda limpa rastros de sangue do corredor e do elevador.
Essa cena soa como uma situação extraordinária, em que um “monstro” parece ter agido contra a vida de uma mulher em caráter de exceção? Se sim, parte da culpa está na própria mídia, que aborda casos de violência contra a mulher como ocorrências isoladas, e não como inseridas em uma rede complexa de agressões. De forma atípica na cobertura jornalística, o termo “feminicídio” aparece com frequência para dizer da morte de Tatiane — o crime é tipificado desde 2015 no Brasil, quando a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei Nº 13.104, que inclui esse tipo de assassinato no rol dos crimes hediondos. No mês em que a Lei Maria da Penha completa doze anos, a sequência de agressões que culmina na morte de Spitzner é apresentada na cobertura jornalística e nas suítes em tom de surpresa. Porém, o feminicídio é, infelizmente, um velho conhecido.
O que surpreende é que os 4 assassinatos diários de mulheres por seus parceiros ou ex-parceiros afetivos e sexuais registrados em 2013, que ajudam a posicionar o Brasil no 5º lugar do ranking mundial de feminicídios, não estejam escancarados como indicativos de uma sociedade misógina. Sociedade que acoberta agressões contra mulheres, até mesmo letais, sob o véu de ditados populares como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Naquele dia, foram muitos os “nãos” que Tatiane recebeu em resposta ao pedido de socorro que clamava pela própria vida. Curioso que em todo o restante que tange a vida das mulheres, a sociedade mete a colher sem pestanejar: seja para inviabilizar nosso acesso ao aborto legal, seguro e gratuito, seja para dizer quais devem ser nossas roupas, qual constituição física nos afiança a “beleza”, ou mesmo qual comportamento nos garante “valor”. Mas, a colher é seletiva.
Seletiva também é a comoção. Devemos chorar por Tatiane e lutar por justiça. Mas também é preciso chorar e lutar pela preservação da vida das mulheres ainda mais vulneráveis a essas violências — a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 54% entre 2003 e 2013, enquanto o número de homicídios de mulheres brancas diminuiu 9,8% no mesmo intervalo. O desenrolar dessas mortes pode ser ainda mais cruel, pois acumulam agressões racistas e ainda encontram no recorte de classe a dificuldade de inserir essas mulheres em uma rede que as acolha e as ampare.
Nem todo assassinato de mulher é um feminicídio, mas a condição de ser mulher é determinante em grande parcela dessas mortes, como a de Tatiane e de outras mulheres que, diariamente, têm suas vidas ceifadas. Por serem mulheres. Por serem compreendidas como propriedades e como vidas menores. Manvailer não é um “monstro”, nem um “louco”: desumanizá-lo minimiza a responsabilidade dos homens por seus atos violentos repetidos cotidianamente contra mulheres: da agressão verbal e psicológica ao assédio, do estupro marital ao cerceamento da liberdade. Ainda vivemos em uma realidade em que nos dizem que a mulher deve “merecer” viver mas, no final das contas, é como se nenhuma merecesse, e algumas merecessem menos ainda.
Bárbara Caldeira
Jornalista, mestra e doutoranda no PPGCOM-UFMG. Desenvolve reflexões sobre relações de gênero, violência contra a mulher e feminicídio.