Os rolezinhos organizados por alguns coletivos em torno do filme Pantera Negra nos shopping centers brasileiros subvertem lugares de negros/as e brancos/as, forçando uma visibilidade para os corpos negros e também para a segregação espacial, principalmente nos templos do consumo de bairros de classe média e alta, onde pessoas negras são constrangidas. Os recentes rolezinhos que aconteceram nas primeiras semanas de exibição do filme comemoraram o que ele representa: negros/as em papéis positivos, heroicos, poderosos.
O filme Pantera Negra é um fenômeno. Trata-se de um blockbuster de aventura, de entretenimento, de super-herói. É uma produção da Marvel com distribuição da Disney, de impacto mundial, cujo roteiro segue toda a estrutura de um filme hollywoodiano comercial mainstream, com mocinho, vilão, batalhas, perseguições de carro, ação. Até aqui, tudo igual. Mas nunca houve uma superprodução desse porte, com mais de 90% de atores e atrizes negras, dirigido por um jovem negro. Os personagens negros não só são os principais, mas são também inteligentes, atraentes, poderosos. Pantera Negra é um filme que traz também uma participação menos acessória das mulheres, que tradicionalmente fazem apenas o papel do par romântico do herói. As mulheres de Pantera Negra têm papéis importantes na trama: a cientista genial do filme, por exemplo, é uma mulher negra, jovem, criativa, confiante e bem humorada. De modo geral, o filme traz um modelo positivo e atraente de representação para um grupo que foi – e tem sido – histórica e mundialmente oprimido e desvalorizado.
Pantera Negra está em cartaz nas mais importantes salas de cinema, que estão geralmente localizadas em shopping centers que, no Brasil, são lugares que tendem a excluir pessoas negras. Aí está o ponto mais interessante dos rolezinhos que têm acontecido no Rio de Janeiro, em São Paulo, Porto Alegre, Ribeirão Preto, Petrolina e outras cidades brasileiras, pois eles subvertem lugares de negros/as e brancos/as, forçando uma visibilidade para esses corpos negros e também para a segregação espacial. Os templos do consumo, principalmente aqueles localizados em bairros de classe média e alta, constrangem pessoas negras, que costumam ser seguidas pelos seguranças como potenciais criminosos/as. Só esse fato já justificaria os recentes rolezinhos que, desta vez, provocados pelo filme, parecem ter uma formação e um objetivo diferentes daqueles de há quatro anos. Os rolezinhos Pantera Negra, organizados por alguns coletivos negros, aconteceram nas primeiras semanas de exibição de Pantera Negra e são constituídos por um público um pouco menos jovem e mais ativista; e que aparece nos shopping centers não apenas para assistir ao filme, mas também para comemorar o que ele representa: pessoas negras em papéis positivos, heroicos, de um poder que foi negado a esse grupo. Como já apontaram França e Dornelas (2014), o rolezinho (de consumo de bens materiais ou culturais, acrescento) é uma forma de sociabilidade. E também de afirmação e de construção de uma identidade negra.
Num país com muita pobreza, e que hoje em dia caminha de volta à manutenção e ao aumento das desigualdades, ir ao cinema ou ao teatro nas regiões mais privilegiadas das capitais é praticamente impossível para a maior parcela da população. Então, a sobreposição das desigualdades de classe e raça torna-se bastante evidente. Além do tempo do deslocamento, do custo do transporte e dos ingressos, o preconceito em lugares majoritariamente brancos é grande, principalmente contra homens jovens negros. A falácia da democracia racial é desmascarada por episódios cotidianos de racismo e por situações e lugares em que pessoas negras são consideradas suspeitas. O filme Pantera Negra e os rolezinhos culturais estão aí para provocar discussão e questionar esses lugares – físicos e simbólicos – tão demarcados e estratificados.
Laura Guimarães Corrêa
Professora do PPGCOM-UFMG
Referência:
FRANÇA, V.; DORNELAS, R. No Bonde da Ostentação: o que os “rolezinhos” estão dizendo sobre os valores e a sociabilidade da juventude brasileira?. Revista ECO-pós. v. 17, n. 3, 2014.