Francisco se posicionou a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Isso aponta uma mudança ou uma continuidade em relação aos seus posicionamentos anteriores? E quais são os avanços efetivos e os limites dessa declaração? Haveria alguma diferença entre ele defender a união civil ou o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo?
No dia 21 de outubro de 2020, o Papa Francisco declarou, no documentário Francesco, ser a favor da união civil entre pessoas no mesmo sexo e disse que os homossexuais têm o direito de formar uma família. A fala repercutiu mundialmente e foi vista como um marco da Igreja em relação à diversidade sexual. Desde 2013, quando se tornou papa, Francisco vem sendo visto como um reformador e liberal em relação às doutrinas da Igreja Católica. Por isso, tornou-se um papa pop, muito presente na mídia e elogiado até mesmo por não católicos.
A relação de Francisco com questões sobre homossexualidade não é nova, como atentamos em 2015, em “O Papa e a homossexualidade”. Em 2010, antes de ser papa, o então Arcebispo Jorge Mario Bergoglio declarou que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era um “ataque destrutivo ao plano de Deus” e que a adoção de crianças por parte de casais gays era uma maneira de discriminá-las. No entanto, no período em que foi arcebispo, ele defendeu mecanismos civis de proteção desses casais. Em 2013, já Papa, ele fez a seguinte declaração: “Se uma pessoa é gay e procura Jesus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”. No Sínodo da Família de 2014, Francisco divulgou um documento que sugeria que a Igreja deveria se abrir mais para os homossexuais. No entanto, 2015 foi um ano conturbado. Em abril, o Papa impediu que um diplomata gay se tornasse embaixador da França no Vaticano. Em setembro, defendeu que funcionários públicos pudessem se negar a realizar casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em outubro, declarou que a família é composta apenas por um homem e uma mulher. No mesmo mês, um padre que residia no Vaticano se revelou gay e foi afastado de suas funções.
De lá para cá, as declarações polêmicas – ora a favor, ora contra as pautas LGBTQIAP+ – continuaram. Em 2016, ele disse que a Igreja deveria pedir perdão aos homossexuais pela maneira com que foram tratados no passado. Em 2017, no entanto, disse que pais de crianças gays deveriam procurar ajuda psiquiátrica para elas. No mesmo ano, paradoxalmente, disse a um homem gay que Deus o havia feito assim. Ele também felicitou um casal gay pelo batismo de seus filhos. Em 2018, declarou que estava preocupado com a homossexualidade no clero – em 2019, Frédéric Martel lançou o livro-reportagem No armário do Vaticano, que revela a presença estrutural da homossexualidade no alto clero.
Agora, depois de uma série de declarações contraditórias sobre o tema, o Papa volta a tocar nesse assunto, de forma mais impactante que nunca. É interessante observar que, dos acontecimentos que citamos aqui, seis são pró-causa LGBTQIAP+ e sete são contra. É um papa indeciso, que já mudou de ideia a respeito da concepção de família, da criação de filhos por gays e da fonte da homossexualidade (problema psiquiátrico ou atribuição divina?). Mas nunca mudou de ideia a respeito de um ponto: o casamento. Apesar de, desde o começo, ter defendido direitos civis para os homossexuais, sempre foi contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E não estamos falando apenas do casamento religioso, mas, mais importante, do casamento civil.
O casamento é uma instituição de origem religiosa, composta pela união de um homem com uma mulher, que formam uma família. O Estado laico, no entanto, apropriou-se dessa instituição e a secularizou. Inicialmente, o formato se manteve o mesmo. Mas com os avanços das pautas LGBTQIAP+ no mundo, em diferentes países, pessoas do mesmo sexo têm adquirido o direito ao casamento. O Papa é a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas não do casamento civil: ele olha para essa instituição do Estado assim como olha para a instituição religiosa.
Pode parecer que não há diferença entre união civil e casamento civil, mas há. Do ponto de vista legal, está em disputa a equivalência de alguns direitos, como a adoção. Já do ponto de vista do reconhecimento social dos relacionamentos em questão, os dois termos são muito diferentes. Relegar aos homossexuais apenas a possibilidade da união civil é dizer que o relacionamento deles não é legítimo o suficiente para ser chamado de casamento, como se fosse algo de segunda mão, de classe inferior. É preciso que o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo seja visto pela sociedade como tão legítimo quanto um relacionamento heterossexual.
De fato, o posicionamento do Papa é um avanço histórico muito significativo na forma como a Igreja lida com a sexualidade. É um passo importante – ainda que bastante tardio – em direção ao respeito às pessoas LGBTQIAP+. Mas é preciso identificar os limites desse passo. A mídia não tem ponderado muito sobre essa questão, e há recepções da notícia colocando o Papa como completamente LGBTQIAP+ friendly. É preciso entender que, apesar do avanço, não é possível dizer que a Igreja não tem mais um posicionamento LGBTQIAPfóbico, mesmo que ele pareça ser consideravelmente menor do que era há alguns dias atrás.
Vanrochris Vieira, doutorando em Estudos de Gênero pela Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisador do Gris/UFMG