Após chamar Bolsonaro de “o pior presidente do mundo” em vídeo para o New York Times, Felipe Neto foi alvo de fake news. O que chama atenção, entretanto, é a repercussão do caso, que ganhou destaque em rede nacional e no Congresso, revelando quem “merece” ser defendido na nossa sociedade.
Desde que começou a se pronunciar mais enfaticamente sobre questões políticas e se posicionou em um campo mais progressista do debate público, Felipe Neto vem sendo atacado nas redes sociais. O mais recente e mais grave ataque ocorreu depois que o youtuber gravou um vídeo para o jornal americano New York Times sobre a péssima situação política brasileira atual, evidenciada pela crise do coronavírus. Em inglês (e num bom inglês), um dos maiores influenciadores digitais do Brasil expõe uma série de atitudes questionáveis de Bolsonaro, qualificando-o como o pior presidente do mundo. Ao final, e em forma de pedido de ajuda, convoca os norte americanos a não reelegerem Donald Trump, uma reeleição que poderia vir a fortalecer o presidente brasileiro. Logo que o vídeo viralizou, Felipe começou a ser alvo de fake news e de ameaças (nas redes sociais e fora delas), sendo acusado de cometer diversos crimes, entre eles, apologia à pedofilia.
A estratégia de desmerecer posições políticas opostas não é novidade, mas a indústria da desinformação (termo usado para enfatizar a intencionalidade da estratégia de disseminação de fake news), num contexto que vem sendo chamado de “pós-verdade”, é também reveladora de muitos aspectos da sociedade contemporânea. Nesta situação em específico, chama a atenção os holofotes dados ao caso – a grande repercussão por parte da imprensa. Além de carta em apoio a Felipe Neto e em defesa da liberdade de expressão, assinada por dezenas de entidades como a Associação Brasileira de Imprensa, Instituto Igarapé e Instituto Vladmir Herzog, o influenciador teve espaço até no Jornal Nacional. Outros atores políticos também se posicionaram enfaticamente – Felipe foi convidado a falar sobre o assunto na Câmara dos deputados pelo próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Vale registrar que até alguns anos atrás, Felipe Neto defendia posições políticas bem diferentes (foi a favor do impeachment da presidenta Dilma) e inclusive criticou acidamente algumas pessoas da ala progressista no país, desferindo ataques contra Cynara Menezes (editora do site Socialista Morena) e Chico Buarque, por exemplo. Não chegou ao descalabro de seus atuais opositores, mas é interessante notar não apenas que agora ele experimenta um pouco do veneno que já destilou, como observar o lugar de onde vem os ataques e para onde se dirigem: é a ala conservadora que, de forma autoritária, quer calar vozes que se opõem ao atual governo e denunciam seus absurdos. A mudança da perspectiva defendida por Felipe Neto – e que saudamos como bem-vinda – não foi tolerada pelos grupos que, antes, o consideravam “um dos seus” e que, agora, viram para ele suas baterias.
Os discursos que carregam desinformação fazem parte de uma disputa pelo poder, pela narrativa hegemônica, de uma luta pela verdade. Fatos e acontecimentos são inventados, distorcidos ou negados com o objetivo de, muitas vezes, modificar a própria história, tanto o passado quanto o futuro. Considerando este aspecto, é importante refletir sobre os ataques sofridos pela candidata a vice-presidência Manuela D’Ávila no período das eleições de 2018. Manuela foi alvo de mentiras infames e inclusive de ataques à sua pessoa e de sua filha (na época um bebê). Esses ataques não provocaram nenhum eco na imprensa e passaram despercebidos na sociedade. Embora o contexto eleitoral traga particularidades, bem como o fato de tratar-se de uma candidata de esquerda, é impossível não atentar para as questões de gênero que atravessam o tratamento dado pela imprensa a um e outro caso. O teor das mentiras, por si só, nos leva a alguns questionamentos: o que choca e o que é potencialmente credível quando se fala de um homem e de uma mulher? Quais são as figuras que merecem ser protegidas da indústria das desinformações?
Manuela, mulher e de esquerda, foi cruelmente atacada, e isto não provocou revolta (será que, nessa condição, ela “merecia”? Como algumas mulheres “merecem” ou “não merecem” ser estupradas?), enquanto Felipe Neto foi vivamente defendido. De fato, devemos defender pessoas que são atacadas injustamente, e repudiar as atuais táticas de linchamento. Mas quem é Felipe Neto? Um empresário e influenciador digital, com muitos seguidores, que comenta fatos da vida cotidiana e agora da política. Não é um líder político, não é um líder religioso, não é um educador ou um grande artista. Não se trata, portanto, do que ele é, do cargo que ocupa, de atividades que desenvolve, de competências que exibe. Trata-se do seu prestígio nas redes, e de seu carisma. A proeminência das pessoas, nesse tempo das Fake News e da “pós-verdade”, bebe agora em outras fontes.
Chloé Leurquin, jornalista, doutoranda em Comunicação Social/ UFMG e pesquisadora do GRIS
Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab