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Os Dez Mandamentos e a reviravolta na teledramaturgia brasileira

A abertura do Mar Vermelho, na novela Os Dez Mandamentos, foi líder de audiência com folga em muitas capitais do país. Quando o personagem do Antigo Testamento usava seu cajado para separar as águas, a Globo via sua hegemonia minada mais uma vez. O acontecimento televisivo criou uma temporalidade para teledramaturgia brasileira, abrindo um futuro possível de concorrência acirrada entre folhetins.

A cena da abertura do Mar Vermelho, em Os Dez Mandamentos. Fonte: Folha de S. Paulo (online)

A cena da abertura do Mar Vermelho, em Os Dez Mandamentos. Fonte: Folha de S. Paulo (online)

Quando, há milhares de anos, segundo a Bíblia, Moisés abriu o Mar Vermelho, não podia imaginar como tal acontecimento seria um dos principais do Antigo Testamento, reproduzido e simbolizado em diversos meios de comunicação. A novela Os Dez Mandamentos se constituiu como uma reviravolta da teledramaturgia brasileira, superando todas as críticas de que a história, de conhecimento difundido no mundo ocidental, não seria capaz de render um folhetim. Afinal, como prender telespectadores com uma narrativa que todos já sabem de cor? A Record surpreendeu, angariando um público cativo no horário nobre, concorrendo – e ganhando, na maioria das vezes – com a audiência do Jornal Nacional e da novela global das 21h. Alguns erros no cenário (como um extintor de incêndio que apareceu em um capítulo no ambiente antigo hebreu), um faraó com mais cara de europeu do que de egípcio ou um Moisés bem mais novo que o descrito pela Bíblia não incomodaram muito quem foi cativado pela trama.

A emissora do pastor Edir Macedo, presidente da Igreja Universal do Reino de Deus, se aproveitou do mau momento da adversária Globo, que vem desagradando parte do público desde o beijo entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em Babilônia. Houve, inclusive, movimentos nas redes sociais liderados por cristãos conservadores pelo boicote à trama. A novela seguinte, A Regra do Jogo, também não foi bem recebida ao apresentar um roteiro confuso e, mais uma vez, com predominância da violência. Isso se soma ao também mau desempenho do Jornal Nacional, com índices menores de audiência há algum tempo, o que prejudica a entrega à novela do horário nobre. Também é importante citar o empenho de Edir Macedo em usar a mídia como aliada na produção de um entretenimento voltado aos fieis. Além disso, vale ressaltar o crescimento da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, onde faz a defesa de projetos de interesse cristão e ajuda na manutenção de preceitos religiosos em um estado que é laico.

Tais fatores podem ajudar a explicar porque um dos últimos capítulos de Os Dez Mandamentos, muito esperado pelo público, se tornou um acontecimento televisivo. Milhares de aparelhos ligados pelo país acompanharam Moisés e sua difícil missão de levar os ex-escravos hebreus para a Terra Prometida. Durante toda a exibição, a Record convidou os telespectadores a comentarem o acontecimento nas redes sociais, sugerindo o uso da hashtag #OsDezMandamentos. Mesmo com o desfecho do acontecimento sendo conhecido, a novela liderou a audiência em capitais importantes: Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Recife. A abertura do Mar Vermelho afetou o público, promoveu uma experiência que ajuda a sepultar o antigo monopólio da teledramaturgia no país. Foi um divisor de águas em um dia que o canal de Edir Macedo se consolidou como uma produtora importante, usando seus intervalos comerciais para mostrar que o horário nobre continuaria com a temática bíblica.

O acontecimento tem, então, o poder de iluminar esse contexto contemporâneo tão difícil de decifrar. Joas (2015) nos lembra que a secularização é um fenômeno recente e que as visões de mundo seculares têm origem em um imaginário religioso. Podemos, assim, usar tal interpretação para analisar o sucesso de Os Dez Mandamentos. O Brasil, por mais secularizado que esteja, ainda tem forte ligação com o legado cristão, que fundamentou suas raízes.

 

Juliana Ferreira
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris

 

Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de dezembro, definido em reunião do Grislab.



Comentários

  1. Gilvan Araújo disse:

    Apesar de entender os argumentos apresentados, acredito ser um pouco precipitado falar de “divisor de águas” (sem nenhuma alusão a Moisés) o fato da novela “Os Dez Mandamentos” (Vivian de Oliveira) ter superado os índices de audiência da Globo no horário em alguns capítulos. Calma, eu explico: em 1990, a novela Pantanal, da extinta Rede Manchete, também obteve um estrondoso sucesso, superando índices de audiência da Globo em quase todos os seus mais de 220 capítulos. Resultado, o sucesso não se repetiu nas tramas seguintes da emissora (como a História de Ana Raio e Zé Trovão, por exemplo), e a Globo contratou o autor (Benedito Ruy Barbosa) e o diretor (Jayme Monjardim). Resultado, Pantanal ficou apenas na história, e hoje, nem a Manchete existe mais. Não estou querendo dizer com tal comparação que a Globo não vai encontrar um dia uma concorrência que lhe ameace de verdade. Estou apenas querendo defender que a audiência de uma emissora são se faz apenas em uma faixa de horário e por algum tempo. É preciso consistência e manutenção desses índices em alta para podermos vislumbrar uma possibilidade de virada de mesa. Também, não vejo somente pelo aspecto positivo o fato de uma temática bíblica atrair tanto a atenção dos brasileiros. Em conversas informais, vejo que existe uma parte da audiência realmente torcendo para Record desbancar a Globo e muitos assistem Os Dez Mandamentos sem pensar muito na qualidade do conteúdo televisivo que assistem. Outros são protestantes e mantêm a coerência de sua crença baseada nos valores que acreditam, um tanto conservadores por meu gosto. Contudo, para mim o que mais impressiona é o fato de muitos rejeitarem histórias que se aproximam muito da realidade e preferirem mesmo a fantasia. É esse o ponto que me intriga nesse momento. Será que a realidade é tão chata, cruel e violenta que estamos buscando momentos para viver em plena fantasia, mesmo que seja através de histórias que sabemos de cor há milhares de anos?

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