Análise | Festividades e megaeventos Questões raciais

A gente está se vendo na Globo?

Nova vinheta do carnaval Globeleza, exclusão de marchinhas racistas do repertório de blocos cariocas e uma suspeita de ataque motivado por “racismo inverso” e apropriação cultural: o que esses acontecimentos revelam sobre as novas estratégias de visibilidade da luta contra o racismo?
Fonte: Globo.com

Fonte: Globo.com

No início de 2017, três episódios geraram muita repercussão midiática e debate nas redes sociais sobre racismo, representatividade negra e apropriação cultural: 1) em janeiro, a nova vinheta do carnaval da Globo, que apresentou pela primeira vez em 26 anos a “mulata Globeleza” vestida, 2) ainda na toada das “revoluções carnavalescas”,  blocos cariocas anunciaram a exclusão de marchinhas racistas de seu repertório carnavalesco, 3) e, no início de fevereiro, uma mulher branca supostamente foi atacada por uma negra no metrô de Curitiba por estar usando turbante.

Todos esses acontecimentos deram a ver, em diferentes perspectivas, questões sociais, econômicas e históricas que envolvem o tratamento dado aos negros e à cultura negra em nosso país, que ainda esconde a tensão racial latente sob a égide da “democracia racial” e da miscigenação. É essa égide que permitiu que o maior canal de TV aberta do Brasil, por anos, durante o dia e a noite, anunciasse a cobertura jornalística do carnaval com imagens de uma mulher negra nua, com o corpo coberto apenas de tinta e nomeada de “mulata” – palavra que nomeia o animal gerado pelo cruzamento entre um cavalo e uma jumenta, e, por associação, os filhos de brancos com negros. É também a desculpa utilizada para defender a reprodução quase secular de marchinhas de carnaval racistas, tidas como “bem humoradas” até hoje; e um argumento que justifica o esvaziamento do significado político dos turbantes e outros adereços para a exploração mercadológica desses acessórios.

Nos últimos tempos, o mercado tem apostado cada vez mais na “diversidade”, e essa se tornou uma jogada de marketing comum, gerando repercussão certa nas redes sociais e muita mídia espontânea – seja a favor ou contra a causa defendida pela empresa. No caso da Globeleza, a aposta foi trazê-la vestida e dançando ritmos de outros carnavais – frevo, maracatu, axé e bumba meu boi -, conquistando a simpatia e elogios dos internautas; os blocos cariocas que baniram as marchinhas racistas receberam uma enxurrada de críticas, mas foram elogiados por nichos feministas; e a Alezzia – marca de design de móveis que se envolveu em uma polêmica com feministas em dezembro do ano passado por utilizar mulheres seminuas para vender móveis – saiu em defesa de Thauane, a mulher branca supostamente atacada pela negra por causa do turbante, aumentando ainda mais o buzz em torno de si.

No entanto, os debates públicos em torno desses três acontecimentos nos causam dois sentimentos contraditórios: o entusiasmo pela oportunidade de mudança/discussão da questão racial no Brasil, e a decepção pela forma mercantilizada e superficial com que ela é tratada. Afinal, não se trata de marcas ou pessoas agindo ativa e ingenuamente a favor do “politicamente correto”, e sim, de empresas cedendo a uma pressão social gerada por muita luta, e fazendo isso porque hoje é possível lucrar muito ao se apropriar (ou negar, como no caso da Alezzia) do discurso politicamente correto.

No cenário atual, o tão criticado politicamente correto – tido como mimimi, “castrador da liberdade de expressão”, como vemos no posicionamento da Alezzia em sua página do Facebook – parece ter sido finalmente incorporado pela indústria capitalista. Vejamos também o caso da campanha de verão da Skol deste ano: depois de muita exploração do corpo feminino em campanhas de cerveja, uma das marcas mais vendidas durante o carnaval e patrocinadora de diversos eventos resolve abraçar a causa do feminismo, trazendo como slogam “Preconceito, ninguém quer ver, nem pintado”.

É preciso reconhecer que, apesar do viés mercadológico que orienta essas ações e suas reações, os ganhos para a causa do movimento negro, feminista, LGBT e outras que têm sido abraçadas pela mídia e pelo mercado são reais, e contribuem, de alguma forma, para que esses grupos sejam menos estigmatizados ou mal-representados nesses espaços de visibilidade.  O que deve nos intrigar, no entanto, é se este é realmente um avanço a ser comemorado e se é este que queremos; há quem critique a lógica liberal de querer gerar mudança social pelo lado de dentro do capitalismo, pois a mudança não se concretizaria, de fato (e, por isso, Zizek critica o “politicamente correto”). Para nós, estudiosos da Comunicação, que conhecemos a força e a importância da representação midiática, sim, parece uma mudança a ser celebrada. Mas não nos esqueçamos: os louros dessa vitória são nossos, dos que lutam para realmente se ver na Globo e fora dela.

Vanrochris Vieira
Mestre em Comunicação pelo PPGCOM-UFMG e professor da Universidade Vale do Rio Doce
Pesquisador do Gris

Mayra Bernardes
Mestranda em Comunicação do PPGCOM-UFMG
Pesquisadora do Gris



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