Segregações históricas, fascismos cotidianos: a intolerância contra religiões de matriz africana no Brasil
O crescimento dos crimes de ódio contra as religiões afro-brasileiras integra o processo histórico de marginalização e demonização da ancestralidade africana no Brasil.
No dia 1º de junho deste ano, a Ialorixá baiana Mãe Dedé de Iansã, sacerdotisa de candomblé há 45 anos, morreu de enfarto ao ter o seu terreiro hostilizado por religiosos de orientação evangélica. O grupo de fanáticos promoveu uma madrugada de insultos à mãe-de-santo de 90 anos, exigindo o ‘exorcismo’ dos demônios que estariam presentes na sua tradicional casa de candomblé. Uma semana depois, no Rio de Janeiro, uma menina de 11 anos de idade, Kailane Campos, foi ferida na cabeça com uma pedra enquanto caminhava pela calçada com sua avó, tia e amigos. Ela vestia trajes afro-religiosos quando foi agredida por dois homens que diziam coisas como ‘diabo’, ‘vá para o inferno’ e ‘Jesus está voltando’. Recentemente, no estado da Paraíba, o terreiro do Babalorixá Antônio Caldas foi depredado pela segunda vez. Garrafas foram arremessadas para dentro da casa ao som dos gritos de ódio a sua tradição religiosa.
A lista de crimes motivados pela perseguição ao candomblé e à umbanda é longa e cresce a cada minuto em todo o território brasileiro. Discursos fundamentalistas fomentam e são fomentados por gestos concretos de agressão aos corpos dos adeptos das religiões afro-brasileiras, às suas casas de culto e símbolos de devoção. Tanto no âmbito da vida cotidiana nas ruas, nas escolas e no ambiente doméstico, quanto no seio das instituições e nas produções midiáticas, os ataques se multiplicam e atualizam, no nível micro e macro, relações históricas de hostilização e rancor aos modos de vida, aos saberes e aos deuses afro-brasileiros.
Certamente, as forças de marginalização da herança africana no Brasil remontam à escravidão dos povos negros e a todas as vertentes perversas desta exploração, como a catequização forçada, o controle punitivo dos corpos escravizados e a consequente segregação social das pessoas afrodescendentes. Neste sentido, a fé e os rituais afro-brasileiros foram fonte de resistência e criatividade ao longo dos séculos de escravidão e ainda o são hoje, após a abolição, quando persistem e se transformam as formas de racismo e desigualdade social. Preservando e produzindo conhecimentos diretamente vinculados à natureza, elaborando suas próprias filosofias, narrativas e práticas de cura e manutenção da vida, as religiões afro-brasileiras hoje existem e resistem vigorosamente.
A demonização perpetrada pela intolerância religiosa promove um apagamento sistemático dos processos históricos e da ancestralidade africana, fundado em uma ignorância antiga e ativa a respeito da nossa formação cultural: faz-se questão em não saber sobre África e as suas forças, presenças e contribuições para a vida brasileira. As acusações e ataques contra Mãe Dedé, Kailane e Pai Antônio se inscrevem numa rede de discursos de ódio – muitas vezes racista, machista e homofóbico – marcados pela aversão à relação com os Outros, pela negação da alteridade, mobilizando uma série de práticas de extermínio da diferença, o que configura hoje um quadro preocupante de afronta aos direitos humanos no país.
Bárbara Altivo
Doutoranda do PPGCOM-UFMG e membro do Gris