Análise | Questões raciais Violência e Crimes

Chame o ladrão! – Paraisópolis e a criminalização das vítimas da ação policial

Se a ação policial contra a juventude negra e periférica revela uma prática genocida do Estado,  a criminalização de vítimas por meio da circulação de imagens e notícias falsas opera como uma segunda morte, que tenta justificar os assassinatos ou mesmo culpabilizar as próprias vítimas pelo seu extermínio.

Foto: Miguel Schincariol via Getty Images/HuffPost Brasil

A madrugada do dia 1º de dezembro poderia ser apenas mais uma em que jovens de todas as partes do Brasil “se jogavam na balada”. Entretanto, para jovens que se divertiam no baile funk da DZ7, realizado na favela de Paraisópolis, zona sul da cidade de São Paulo, a noite terminou em massacre. Uma ação da Polícia Militar naquela madrugada levou à morte de nove jovens de 14 a 23 anos que frequentavam o baile, 8 homens e uma mulher. As mortes foram por asfixia, em decorrência do tumulto e do pisoteamento iniciados após a ação. Policiais contam que, antes de agirem, uma moto furou o bloqueio policial e atirou contra eles. A versão das testemunhas, entretanto, afirma que os policiais agiram exclusivamente para dispersar a festa.

Os policiais não apresentaram provas de que houve esse motivador externo. Este também não é um caso isolado em que a ação das polícias é desproporcional e opera, onde jovens festejam e pessoas residem, como se estivesse num campo de guerra. Moradores das periferias, sobretudo jovens e negros, são tratados pelas forças de segurança pública como inimigo a ser combatido, e suas manifestações culturais são estigmatizadas, criminalizadas e usadas como pretexto para justificar abordagens violentas que, na verdade, revelam intenção e ação prática genocidas por parte do próprio Estado contra essas populações. Foi assim com o samba e com a capoeira, que chegaram a ser considerados como crimes para justificar o encarceramento da população negra – há pouco tempo liberta da escravização. Está sendo hoje, sobretudo, com o funk.

Um outro tipo de arma vem sendo utilizada para justificar a violência policial ou mesmo culpabilizar as vítimas pela sua própria morte: a circulação de imagens e notícias falsas. Logo apareceram acusações falsas contra as vítimas, como um post que mostrava uma mulher segurando um revólver, identificando-a como “uma das que morreu no baile funk”. A foto, porém, não é de Luara Victoria de Oliveira, a única mulher entre as vítimas. Também circulou uma foto de um homem armado junto a uma criança com um colete à prova de balas, bem como um vídeo de pessoas atirando garrafas em uma viatura da Polícia Militar, identificando as pessoas, falsamente, como moradores de Paraisópolis.

A criminalização póstuma de vítimas de policiais por meio de imagens e notícias falsas se tornou um recurso recorrente nas mãos de cidadãos autoritários: o ato de manchar a imagem pública das vítimas opera uma segunda morte, culpabilizando-os e justificando seu assassinato. Não parece importar muito se as imagens são verdadeiras ou, ainda que fossem, se é ético usá-las para autorizar policiais a abusar da força e concentrar os poderes de julgar, condenar e executar pessoas.

A criminalização prévia das culturas musicais negras e periféricas converge com a criminalização póstuma das vítimas de policiais, borrando a linha temporal discursiva. Assim como “bandido bom é bandido morto” na linguagem autoritária, seus falantes parecem operar a lógica inversa, na qual “morto bom é morto bandido”: vale tudo para justificar o assassinato de pessoas negras e pobres, até mesmo caluniá-las e criminalizá-las in memoriam. Essa convergência de tempos históricos distintos nos gestos discursivos de criminalização parece tentar desviar a atenção do verdadeiro ato de violação no presente dessas mortes, pelas mãos da polícia e do Estado.

Cecília Bizerra Sousa, Doutoranda em Comunicação/UFMG e pesquisadora do Gris/UFMG
Lucianna Furtado, Doutoranda em Comunicação Social (PPGCOM-UFMG)



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