Para quem não conhece o Sertão e o Agreste nordestinos, chega a ser difícil de explicar a afetação provocada pelas chuvas. Mesmo não reverberando tanto no cenário nacional, é considerado o principal assunto do momento na região e tem muita relação com a pandemia do novo coronavírus.
Os holofotes sobre a duas crises que o Brasil enfrenta, a sanitária e a política, faz com que dificilmente vejamos manchetes ou destaques para assuntos que não se relacionem à Covid-19 ou ao caos que se instalou junto ao governo federal. No entanto, há um acontecimento que, mesmo não reverberando tanto no cenário nacional, é considerado o principal assunto do momento em parte do Nordeste: uma temporada de chuva finalmente chegou ao Sertão e ao Agreste.
Para pessoas de outras regiões, pode parecer estranha a afetação do acontecimento “chuva”. É o assunto das ligações telefônicas aos parentes distantes, o tema abordado em postagens e fotos nas redes sociais, o que pauta relações e interações cotidianas, o que dá algum horizonte de esperança de um ano menos sofrido. Para quem não sabe como é a vida no Sertão, pode parecer surreal comparar a importância da chuva à relevância da Covid-19 no cenário atual, mas ambos os acontecimentos estão profundamente interligados.
Ainda que a pandemia tenha suspendido as feiras semanais, que são o principal espaço de socialização nas pequenas cidades (inclusive a chuva gera uma demanda de insumos agrícolas e movimenta o comércio local antes e depois das safras), o volume pluviométrico de 2020 é determinante para o combate à doença. Não se pode lavar as mãos, tomar banho com frequência, comer bem, estar hidratado ou conseguir algum isolamento sem acesso à água.
A tragédia que vem com a doença é amenizada: haverá como plantar, colher e ter o que comer e beber pelo resto do ano. Em Pernambuco, Ceará, Paraíba e no Sudeste do Piauí, as chuvas que caem desde janeiro têm ajudado a enxergar 2020 também como um ano de bênçãos, algo difícil de se compreender nos apartamentos das grandes metrópoles. O Ceará, em 6 meses, teve 80% da chuva esperada para os dois semestres; há mais de três décadas não se via um início de ano com tantas precipitações.
A mesma chuva, que em “passe de mágica” converte tons de marrom em verde e promete uma boa safra nos lugares castigados pela estiagem, não chega da mesma maneira para todos. Enquanto há açudes que “sangram” (ou transbordam) pela primeira vez em muito tempo, há também outras regiões ainda sem chuva, reservatórios secos ou ainda aquelas de comunidades ribeirinhas que alagam. Nos lugares em que a água chega, a promessa da redução de precariedades e o fim do rodízio de água em muitas torneiras também é acompanhada de outra preocupação: nem sempre os reservatórios estão bem conservados, e ameaçam romper, como aconteceu em Arcoverde-PE e provocou a inundação de pelo menos duas cidades. Àqueles desabrigados, como impor isolamento social e condições adequadas de higiene?
Também é impossível pensar em um eficiente combate à pandemia quando ali se concentram pessoas com difícil ou nenhum acesso a água encanada e rede de esgoto. Os efeitos da crise sanitária são implacáveis: não chega alimento, cessa o transporte intermunicipal, somem os carros-pipa. O governo continua negligenciando essa parte do Brasil, que tem pouca infraestrutura e, geralmente, não tem fácil acesso a leitos de hospitais. Por outro lado, a natureza parece tentar compensar e em muitos lugares o desespero gerado pela Covid-19 é amenizado com a chegada da chuva, materializando a esperança de que dias melhores virão para viver (em vez de sobreviver).
Tamires Ferreira Coêlho, professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, doutora em Comunicação pela UFMG e jornalista