Análise | Movimentos sociais e ativismo Violência e Crimes

E quando o bandido vira vítima?

Na noite de sexta-feira, 31 de janeiro de 2014, um jovem de quinze anos foi espancado e preso nu a um poste, com uma tranca de bicicleta. O fato aconteceu no Aterro do Flamengo, bairro nobre do Rio de Janeiro e suscitou debate na sociedade, movimentando a mídia e as redes sociais. O que nos chama atenção para esse fato é a dificuldade da imprensa e também da própria sociedade de identificar o bandido e a vítima nessa história.

Entre os inúmeros discursos e opiniões que surgiram a respeito do caso, percebemos que o adolescente assumiu o papel da vítima e o do bandido. As falas que repudiam o ato posicionam o jovem como vítima e destacam a abordagem violenta, o fato de ter sido preso nu e exposto de forma humilhante. A própria história de vida do rapaz é usada como forma de vitimizá-lo. Segundo reportagem da Veja, esta seria “uma coleção de tragédias da infância”. Outra imagem que o insere no papel da vítima e alerta para a ação abusiva, é a que o compara a um escravo preso ao pelourinho. Podemos interpretá-la ainda como uma crítica ao preconceito racial na sociedade brasileira, afinal, o fato de ser negro o aproxima do estereótipo do bandido que é difundido em nossa sociedade.

No entanto, identificamos também vários discursos a favor da ação dos homens que prenderam o jovem, caracterizando-o como bandido, um infrator e, por isso, merecedor da punição. Nestes casos, quem assume o papel da vítima é a sociedade que, cansada da violência e da ineficiência do Estado e das forças de segurança, é obrigada a fazer justiça. Alinhada a este discurso, a âncora do SBT, Raquel Sheherazade, movimentou as redes sociais após seu comentário sobre o caso no Jornal do SBT. Segundo a repórter, o “marginalzinho” teria uma ficha criminal mais suja que “pau de galinheiro” e o fato de fugir do hospital, ao invés de depor contra seus agressores, seria prova de sua culpa. Sheherazade denominou os homens envolvidos no ato como “vingadores” e alegou que o gesto seria compreensível, na medida em que a justiça é falha. A apresentadora também caracterizou a ação como “legítima defesa de uma sociedade sem Estado contra um Estado de violência sem limite” e terminou propondo que aqueles que defendem o adolescente aderissem então a sua campanha: “Faça um favor ao Brasil. Adote um bandido”.

Mais do que dizer quem está certo ou errado neste debate, propomos aqui, mesmo que brevemente, pensar o que esta divisão de opiniões diz de nossa sociedade e para isso chamamos atenção para duas questões. A primeira é para a dificuldade da mídia e nossa em lidar com a ambiguidade. O adolescente não tem as características da vítima habitual que encontramos na mídia, ou seja, o cidadão “de bem”, o trabalhador, o “bom moço”. Ele morava nas ruas, cometeu crimes e há uma dificuldade em lidar com o fato de que ele foi vítima de um ato de violência, de aceitar que o “bandido” pode ser vítima, que pode ocupar este papel social. Assim, este caso nos desafia a sair das oposições, das dualidades, onde o mundo se divide entre bons e maus, onde vítimas e bandidos parecem não poder convergir em um mesmo indivíduo.

Outro ponto que queremos ressaltar é o discurso “do olho por olho, dente por dente” tão presente na fala dos que se posicionaram a favor do ato de violência. Percebemos isso, claramente, na fala de Raquel Sheherazade, que justifica a violência como uma forma de defesa do cidadão. Porto (2009) afirma que os media alimentam a sensação de insegurança, ao reforçar representações relacionadas à ineficiência do sistema público no combate ao crime. Desse modo, alimenta-se a lógica do “salve-se quem puder e como puder”, o que segundo a autora, é compatível com outra lógica “a de ‘fazer justiça com as próprias mãos’, que leva cidadãos a se armarem e a se prepararem para a ‘guerra urbana’.” (PORTO, 2009, p. 221).  E o principal fator a ser considerado é que este discurso parece não se importar com os meios para se chegar a essa “justiça”, se há excessos, se há abusos. O que importa é vencer o mal, nem que seja fazendo também o mal. Se o agredido é um infrator, a violência parece se justificar, torna-se merecida pelo simples fato dele ser bandido, mesmo que naquele momento ele não coloque em risco o cidadão.

A partir disso, propomos a questão: quando o cidadão, considerado de bem, pratica a violência contra este adolescente – e contra tantos outros -, simplesmente pelo fato dele ter “cara de bandido”, será que os papéis não se invertem?

Charge: Latuff

Fabíola Souza
Doutoranda do Programa de Pós-gradução em Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG

Referência:
PORTO, Maria Stela Grossi. Mídia, segurança pública e representações sociais. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP. São Paulo: USP, v. 21, n. 2, p. 211-233, nov. 2009.



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