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Distopia brasileira: entre a naturalização do estupro e a condenação de vítimas

Embora tenha alcançado repercussão nacional, levantado debates e dividido opiniões por algumas semanas, o caso da menina capixaba de 10 anos, grávida após ser estuprada pelo tio que abusava dela desde os 6, definitivamente, não é isolado. Além da crueldade do estupro em si e das ameaças feitas por abusadores, a maioria das vítimas brasileiras enfrenta ainda uma estrutura governamental violadora, que raramente garante acesso a direitos e a proteção.

Foto: Diego Nigro / EFE

As recomendações de isolamento social que protege do novo coronavírus são as mesmas que dificultam as denúncias e expõem ainda mais vítimas de violência física, sexual e psicológica, com destaque para crianças e adolescentes, cujos abusadores costumam ser pessoas de convívio próximo. Com uma estimativa de 30% de chances a mais de sofrer violência durante a pandemia, a situação piora bastante se olharmos para o maior alvo da violência sexual: meninas negras são as principais vítimas brasileiras, segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O caso de uma delas ganhou destaque midiático e tirou a pandemia dos holofotes por algumas semanas, evidenciando os riscos de se abordar (e governar) assuntos de saúde pública sob a lente do conservadorismo religioso e misógino.

Estupros frequentes que levam a uma gravidez ainda na infância, um diagnóstico de diabetes gestacional e risco comprovado de morte, a solicitação desnecessária de autorização judicial, o hospital que adia e se nega a fazer o procedimento e que a obriga a atravessar o país para conseguir um aborto seguro, a exposição de dados sigilosos da vítima em redes sociais por conservadores, a perseguição do aeroporto ao hospital a ponto de a criança ter de entrar dentro de um porta-malas, a aglomeração de pessoas que promove um espetáculo na frente do hospital para intimidar a equipe médica responsável por salvar a garota, os xingamentos e tentativas de invasão do hospital onde a criança está internada para impedir o aborto, calúnias e injúrias de conservadores contra o diretor do hospital excomungado duplamente pela Igreja Católica (após salvar vidas de vítimas de estupro), dezenas de ativistas que abandonam o distanciamento social e se dirigem ao hospital para manifestar pelos direitos da menina… Ingredientes de um pesadelo distópico tornam difícil elencar o que é mais irracional nesta sequência de absurdos que envolve a tentativa de garantia de um direito garantido pelo Código Penal desde 1940. Parece um roteiro de ficção teocrática da década de 1980, uma narrativa distópica, mas é o Brasil em 2020.

Uma reportagem recente da Folha apurou que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, agiu nos bastidores para impedir que a criança realizasse o aborto, apesar de o caso se enquadrar em duas das três situações em que o procedimento é legalmente autorizado no Brasil (gravidez resultante de estupro e risco de vida para a mãe). De acordo com a Folha, assessores da ministra também teriam vazado dados da menina à ativista ultraconservadora Sara Giromini, que, atentando contra o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), divulgou em suas redes sociais o nome da criança e o endereço do hospital em Recife-PE no qual ela faria o procedimento. Não bastasse a negativa de cuidado do hospital do Espírito Santo, que a fez viajar a outro estado para a realização do que lhe seria garantido por lei, a menina teve que entrar no hospital escondida, pois fora recebida pelos seguidores de Sara aos gritos de “assassina”.

Como já apresentado em análise anterior, Sara exerceu, de junho a outubro de 2019, o cargo de coordenadora-geral de Atenção Integral à Gestante e à Maternidade do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e, conforme consta no seu site, hoje atua como “consultora particular” no mesmo Ministério. Após a divulgação dos dados, Sara, que recentemente foi presa por organizar atos antidemocráticos, teve suas contas em redes sociais denunciadas e suspensas.

Este caso específico atingiu proporções extremas, mas a cruzada que estes ultraconservadores – hoje legitimados pelo Estado por figuras como Damares – vêm promovendo país afora contra o que denominam “ideologia de gênero” tem como principal estratégia a intimidação de profissionais que trabalham com a educação sexual nas escolas e, consequentemente, a interdição do debate nas instituições de ensino. Tais atitudes têm como fachada a “defesa da moral e da família”, mas, na verdade, tornam as crianças e adolescentes ainda mais vulneráveis, pois, sem orientação e informação adequadas, fica ainda mais difícil para elas a identificação das situações que se configuram como abuso e exploração sexual. Por outro lado, sem tocar no assunto, profissionais da educação também ficam com a capacidade de percepção e escuta comprometida. Tudo isso dificulta o reconhecimento, a denúncia dos crimes e, consequentemente, a responsabilização dos agressores e o rompimento do ciclo de violência.

O episódio que poderia levar ao fortalecimento de normas de proteção a crianças, à garantia (nem sempre cumprida na prática) de realização do aborto seguro após estupro, ou até à discussão do aborto como uma questão de saúde pública, livre de preceitos religiosos, levou a um desdobramento extremamente cruel: em 28 de agosto, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que dificulta ainda mais a interrupção da gravidez fruto de violação sexual. Se antes a vítima já encarava olhares tortos nas instalações hospitalares, passava por violências que incluem a recusa de acesso ao procedimento por parte de profissionais de saúde, agora tem também de se apresentar a autoridades policiais, ser interrogada sobre o estupro (como se fosse criminosa e não vítima) e poderá ser submetida a ultrassonografia para ver o feto. Além de ser uma barreira ao alcance do direito ao aborto, a portaria, elaborada sem a consulta de especialistas, revitimiza de forma sequenciada mulheres e meninas que deveriam ser acolhidas, e legitima uma forma de tortura que deixa sequelas para o resto da vida. Mais constrangimentos, violências e violações para brasileiras, a quem são negados os direitos à infância, segurança, proteção e a um futuro digno.

A perversidade extrema que a portaria normatiza gerou repercussões negativas, inclusive por parte da bancada feminina na Câmara, que sugeriu sua suspensão. Diante das reações, no último dia 24 de setembro, o militar que está há 4 meses como ministro interino da Saúde publicou uma nova portaria que atualiza o que deve ser feito em casos de abortos permitidos pela lei. A nova portaria, entretanto, praticamente repete a anterior. A novidade é que, agora, não é apenas responsabilidade do médico acionar a polícia após o acolhimento de vítimas de estupro, mas uma opção de todos os profissionais de saúde responsáveis pelo estabelecimento. Além disso, o trecho que definia que a equipe médica deveria informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia também foi retirado. Apesar das mudanças, a portaria continua sendo responsável por promover uma inviabilização ainda maior do acesso das mulheres a uma garantia que está na lei.

Sob uma máscara de moralidade e de defesa de princípios “terrivelmente cristãos”, na qual o aborto é mais demonizado e criticado que o estupro, o governo em curso e seus agentes na sociedade ultrajam diariamente dignidades e corpos, violando direitos e legislações há muito estabelecidas, como é o caso do ECA e da lei brasileira sobre o aborto, citados nesta análise. Irônico – e trágico – é perceber que isso se dá diante dos olhos de todas as instituições, sob a articulação e incitação da ministra que deveria ser a autoridade do Executivo a promover os direitos humanos, sobretudo das crianças e adolescentes.

Tamires Coêlho, professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, doutora em Comunicação pela UFMG e jornalista;
Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris;
Chloé Leurquin, jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris



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