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Gesto imprevisto não ganha visibilidade, mas é o melhor da abertura da Copa do Brasil

Diário da Copa – A cerimônia de abertura da Copa foi alvo de muitos debates e dividiu opiniões. Muitos manifestaram desapontamento com a forma pela qual fomos representados para o mundo. Mas um “furo” no roteiro merece ser analisado…

12 de junho de 2014, 15h30, estádio Itaquerão em São Paulo: é o início programado do acontecimento Copa do Mundo, que na prática já havia começado, e chegava num clima de apreensão. A abertura cumpre um papel importante simbólica e cronologicamente na trajetória da Copa. Com duração de cerca de 25 minutos, a cerimônia, de um modo bem peculiar, tratou das riquezas da natureza e da cultura brasileiras e da nossa paixão pelo futebol.

A cerimônia mal terminou e nas redes sociais o debate já estava instalado. Impossível fazer uma radiografia de tudo o que circulou, mas muitos comentários seguiram a linha “a feira de cultura da minha escola faria melhor” ou exprimiram “vergonha” e “horror”. A festa usou e abusou de alegorias, mas na avaliação de muitos, elas não poderiam ser comparadas ao que ocorre durante o carnaval.

Um incômodo ganhou força: porque a abertura da Copa no Brasil foi planejada por uma belga e um italiano? O comentário de Alceu Valença publicado no Facebook é bastante representativo dessa vertente:

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Para o encerramento, a execução da música tema, We are one, interpretada por Jenifer Lopez, Pitbull e Cláudia Leitte. A canção, que já não tinha ganhado grande adesão desde o lançamento, foi executada em playback na cerimônia e não empolgou.

Mas talvez o melhor da abertura estivesse reservado para depois da cerimônia propriamente dita. Com os jogadores já em campo, antes da partida começar, três adolescentes entraram no gramado vestidos de branco, segurando pombas também brancas, que foram soltas como sinal de paz. O menino branco, a menina negra e o menino índio – com um cocar – representaram do modo mais estereotipado possível a “diversidade” do povo brasileiro.

O modo como os personagens nos foram apresentados antecipava também a previsibilidade daquele roteiro. O início, o meio e o fim daquela pequena trama tecida minutos antes da bola rolar já estavam dados. Não parecia haver qualquer possibilidade de ruptura, surpresa. No entanto, Werá Jeguaka Mirim, de 13 anos, não assumiu o papel que lhe havia sido imposto e ainda dentro do gramado ergueu um tecido vermelho onde se lia: “Demarcação”. Se os olhos do mundo todo estavam voltados para o Itaquerão naquele momento, a tática era colocar em pauta um direito das populações indígenas que é sistematicamente violado no Brasil. Num gesto rápido e imprevisível o esforço de representação de uma convivência pacífica e até feliz – colocada em termos muito semelhantes aos da “democracia racial” – estava radicalmente confrontado.

Como se poderia prever, não houve espaço na transmissão oficial para o gesto reivindicatório e fora do script. Para quem organiza a Copa, aquele não era o momento de colocar a harmonia em xeque. Mas o gesto de Werá circulou na internet. Não ganhou a visibilidade merecida, mas deve ser reconhecido por sua potência. Uma ruptura bastante simbólica numa cerimônia protocolar.

No fim, a inquietação: qual é o lugar das contradições na “Copa das Copas”?

Eliziane Lara
Mestre em Comunicação Social e integrante do Gris/UFMG



Comentários

  1. Eliziane Lara disse:

    Acho mesmo que não deu para escapar do ufanismo, Nísio. E a omissão da transmissão oficial em relação ao gesto do índio não deixa dúvidas quanto à legitimidade da pauta que ele tentou levantar. Pode não ter agradado, mas achei a abertura bem representativa do que somos e das nossas contradições…

  2. Nísio Teixeira disse:

    O contraponto a Alceu também gera um bom argumento: não seria tudo muito ufanista alfim e ao cabo? Dias depois esse Brasil caudaloso citado por Alceu englobou os gringos em diversos pontos e festas no país, talvez mostrando aí a imagem que queria ser construída. Quanto ao gesto do indígena e sua omissão, metáfora perfeita para a ausência na agenda geral eleitoral, especialmente da situação, da proposta de uma política indigenista ao país.

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