Análise | Questões raciais Violência e Crimes

Jovens negros torturados e a continuidade escravocrata

Casos de tortura vão além da conjuntura eleitoral de glorificação do discurso de ódio, trazendo à tona as profundas raízes de nosso passado colonial.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo.

Recentemente, duas notícias de tortura contra jovens negros chocaram o país. Na primeira, ocorrida em agosto e noticiada no mês seguinte, um jovem de 17 anos foi acusado de tentar furtar um chocolate no supermercado Ricoy, em São Paulo. Dois seguranças levaram o rapaz para um cômodo nos fundos, onde o despiram, amarraram, amordaçaram e chicotearam. O segundo caso aconteceu em março de 2018, mas foi divulgado apenas em setembro deste ano: em uma unidade do supermercado Extra, também em São Paulo, o homem agredido foi acusado de roubar um pedaço de carne. Os seguranças também o amarraram e amordaçaram, agredindo-o com um cabo de vassoura e choques elétricos.

No entanto, esses relatos não são isolados: em 2015, um homem negro foi amarrado em um poste e espancado até a morte, acusado de assaltar uma loja em São Luís. No ano anterior, no Rio de Janeiro, um adolescente negro foi amarrado em um poste, preso pelo pescoço por uma trava de bicicleta, despido e agredido. A “justificativa” apresentada pelos agressores e apoiadores foi que o rapaz seria responsável por furtos e assaltos na região. Se procurarmos mais em nossas memórias e nas notícias registradas, encontraremos muitos casos parecidos, e há outros tantos silenciados.

Segundo Grada Kilomba, as situações cotidianas de racismo permitem revelar as profundas marcas do colonialismo nas sociedades, emergindo como reencenações do período escravocrata. Pessoas negras amarradas, amordaçadas, presas a postes, agredidas, chicoteadas, torturadas – essas imagens acionam outras cenas de nossos imaginários culturais, vindas das narrativas e ilustrações dos livros de história sobre as cruéis torturas contra nossos antepassados escravizados. Trazer para o presente essas visões do passado, impondo essas torturas contra pessoas negras na atualidade, não é um gesto acidental, desvinculado de nosso contexto.

Vivemos, atualmente, um cenário de retrocesso e intenso reacionarismo contra pautas progressistas e direitos conquistados pela população negra. Essas encenações da escravidão nos fazem atentar para a insatisfação dos agentes do conservadorismo: eles querem retroceder na história, e não basta voltar apenas 15 ou 20 anos, dissolvendo essas conquistas, removendo as pessoas negras das universidades e de seu recém-ingresso nas classes médias, destituindo-as de seus direitos trabalhistas, voltando a confiná-las às margens esquecidas da sociedade. Até mesmo o retrocesso ao período autoritário da ditadura militar brasileira, evocada pelos choques elétricos utilizados como ferramenta de tortura, não parece suficiente. Para eles, é preciso retroceder até o período colonial, quando essas práticas de tortura eram garantidas pela lei, pelo direito de propriedade sobre pessoas escravizadas.

De acordo com as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, a escravidão foi (é) mais do que apenas um sistema econômico: ela moldou condutas e definiu formas de sociabilidade em nosso país. Assim, ela re-emerge em diversas situações racistas – desde microagressões, como “piadas” racistas, ofensas aos nossos cabelos e estéticas, até manifestações mais violentas, como os linchamentos e torturas.Essas agressões, encorajadas e até mesmo glorificadas pelo discurso de ódio e violência do atual contexto político-eleitoral, não se limitam apenas a ele, mas dialogam com uma dimensão mais ampla da continuidade histórica do genocídio negro pelas mãos da polícia e do Estado, como no caso mais recente da menina Ágatha. Quando tudo isso não parece suficiente, sob a aparência de justiça, o racismo é perpetuado pelas mãos dos indivíduos dispostos desde a compartilhar notícias falsas até a agredir mortalmente jovens negros. Em entrevista recente, falando sobre racismo estrutural, o técnico de futebol masculino Roger Machado explicou didaticamente o mesmo que se observa nos casos de tortura e agressão: o passado escravocrata, autoritário e genocida brasileiro nos assombra, precisamente por seu poder em se fazer tão presente.

Referências

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Lucianna Furtado, doutoranda em Comunicação Social pela UFMG



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