Análise | Diário da Quarentena Infância, juventude, 3ª idade Morte Questões raciais

O racismo que matou Miguel

Abandonado em um elevador pela empregadora de sua mãe, o menino Miguel Otávio ficou à própria sorte pelos corredores do prédio e caiu do nono andar. Sua morte, além de evidenciar o racismo estrutural que desumaniza e mata, carrega símbolos da desigualdade que atravessa as relações sociais no Brasil.

Mirtes e Miguel. Foto: divulgação

Mesmo com a pandemia, a empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, mulher negra, moradora da periferia do Recife, continuou com sua rotina de trabalho em um apartamento de luxo no centro da capital de Pernambuco. No dia 2 de junho, não tendo com quem deixar o filho, levou o pequeno Miguel Otávio, de 5 anos, para o trabalho.

Ao sair com o cachorro dos patrões para passear, Mirtes deixou Miguel aos cuidados de sua empregadora, Sari Gaspar Côrte Real, mulher branca da elite pernambucana, que fazia as unhas. Com a saída da mãe, Miguel começou a chorar e se dirigiu ao elevador em busca dela. As imagens de vigilância mostram o momento em que Sari aperta o botão do elevador que se fecha com o menino sozinho.

O desfecho da atitude negligente de Sari foi a morte de Miguel, que caiu do nono andar do prédio. A mãe só soube dos detalhes da queda após o enterro do filho. Mirtes, que sempre cuidou dos filhos de Sari com carinho e zelo, não teve a mesma retribuição da empregadora.

Para além da tragédia que representa, a morte do menino Miguel está carregada de símbolos que são, em verdade, manifestações concretas e visíveis da desigualdade atroz que atravessa as relações sociais no nosso país. O fato de Mirtes levar o filho ao trabalho por não ter com quem deixá-lo, expondo a maternidade aos riscos a que expôs, revela a desigualdade nas relações de gênero, que todos os dias sobrecarrega e mata mulheres no Brasil.

Do mesmo modo, o fato de Mirtes trabalhar em plena pandemia e contrair Covid-19 do patrão revela a herança escravocrata que recai sobre o trabalho doméstico: mesmo não sendo serviço essencial, vem sendo exercido como se o fosse, vulnerabilizando a vida das trabalhadoras, mulheres negras em sua imensa maioria.

Como se não bastasse, o caso também expõe a herança patrimonialista do Estado brasileiro. De acordo com a imprensa, Mirtes estava, sem saber, lotada como servidora da prefeitura onde Sérgio Hacker, seu empregador, é prefeito. Ou seja, o salário que recebia mensalmente para trabalhar no ambiente privado da casa era pago não pelos patrões, mas com dinheiro público.

Mas, sem dúvida, o símbolo máximo dessa morte é o racismo, que permeia as relações sociais no nosso país e condena corpos negros à desumanização e, consequentemente, à inexistência por meio da eliminação. Mesmo criança, Miguel habitava um corpo negro, inevitavelmente afetado pelo olhar racista que desumaniza e mata. Por acontecer em meio aos protestos em nível mundial sobre o racismo, sua morte mobilizou a discussão sobre a temática racial no Brasil, inclusive por celebridades e políticos, e reforçou a urgência do aprofundamento da discussão suscitada nas redes sociais pela hashtag #vidasnegrasimportam.

Por fim, cabe ressaltar o protecionismo em torno da imagem de Sari. Tanto a polícia quanto a imprensa não divulgaram o nome da empregadora, que mais tarde foi revelado por Mirtes. Como a própria Mirtes destacou, a diferenciação na condução do caso é evidente. Presa em flagrante, Sari pagou 20 mil reais de fiança e aguarda investigação em casa. Mirtes, no entanto, provavelmente não teria a mesma sorte se a situação ocorresse com um dos filhos da patroa.  Primeiro porque não teria essa quantia em dinheiro e, segundo, porque a “licença” para  ser negligente vale apenas quando o filho é da empregada.

Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris
Fabíola Souza, professora da UFOP e pesquisadora do Gris



Comente

Nome
E-Mail
Comentário