A morte do renomado comediante de Hollywood Robin Williams chocou o mundo. Esta análise mostra como tal acontecimento foi capaz de introduzir uma nova forma da mídia de encarar o suicídio. A mudança de postura descobriu, então, diversos tabus presentes no contexto contemporâneo, em que a propensão a doenças psiquiátrica e a velhice são assuntos silenciados. O poder hermenêutico do enforcamento de Williams se apresenta revelador sobre o atual contexto cultural brasileiro.
O suicídio do ator e comediante de Hollywood Robin Williams pegou o mundo de surpresa. Por si só, a morte de tal figura pública, tão jovem, aos 63 anos, é um acontecimento que rompe com a continuidade da experiência e choca sua fiel plateia. Mas o artista escolheu quando e como sair de cena em um surpreendente último ato. Este acontecimento, como define Louis Quéré, afetou as pessoas. A passibilidade se confirma nas inúmeras matérias retomando a trajetória gloriosa de Williams no cinema, com personagens profundos, intensos e marcantes no drama ou na comédia. Ela também se mostra presente nos depoimentos de fãs inconsolados ou de colegas de trabalho e familiares entristecidos.
Além de ter o poder de afetar os indivíduos de diferentes maneiras, esse acontecimento tem um outro potencial que deve ser analisado: o de revelar aspectos configuradores do contexto social contemporâneo. O suicídio de Williams descortinou tabus acerca da morte voluntária, de doenças psiquiátricas e da velhice, além de abrir um novo campo de possíveis, retomando a expressão de Hannah Arendt: a mídia não manteve sua posição silenciosa sobre esse tipo de morte e enfrentou o tabu ao confirmar seu encobrimento e tentar mudar de discurso.
O ser humano, apesar de consciente de sua finitude, não pode nada fazer para impedi-la. Quando chega, o indivíduo já não o é mais. Saber da morte é uma das conquistas da espécie humana, mas quase sempre traduzida em revolta. Não surpreendem as tentativas de silenciá-la e esquecê-la, como ocorre na atualidade, segundo José Carlos Rodrigues. Com o suicídio, a postura é ainda mais dura. Se o sujeito tem como principal instinto a manutenção da vida, o que pensar do que se retira arbitrariamente? O histórico da humanidade revela uma condenação, social e religiosa, ao longo dos anos, o que resulta em um tabu ainda vigente nos dias de hoje. Experiências de divulgar o ato foram negativas, como o caso clássico do jovem Werther, personagem de um romance do escritor alemão Goethe, que gerou inúmeras imitações. Não foram poucos os meninos encontrados mortos da mesma forma que ele, com um tiro na cabeça e um exemplar do livro ao lado do corpo. Optou-se, então, pelo silêncio.
Entretanto, o suicídio de uma figura pública não pode ser ignorado. É um dos poucos casos em que a mídia não pode escapar deste acontecimento. A sugestão, contudo, é que apenas o cite como a causa da morte. No caso de Robin Williams, a imprensa brasileira começou exatamente assim. As manchetes diziam: “Morre ator Robin Williams aos 63 anos”. Nos textos, apenas o relato de que a polícia suspeitava de suicídio e nada mais. Enquanto isso, jornais e portais norte-americanos estampavam: “Robin Williams comete suicídio”. No dia seguinte, quando os policiais de Mary County, na Califórnia, concederam uma entrevista coletiva sobre o caso, não houve escapatória.
A mídia brasileira se rendeu a este suicídio e produziu matérias que davam, inclusive, detalhes sobre o ato. A cena foi descrita em minúcias: ele foi encontrado com um cinto no pescoço, pendurado em uma porta, sentado. Havia, também, uma faca em seu bolso, provavelmente usada para cortar seus pulsos. Já neste momento, vemos o campo de possíveis do acontecimento. A imprensa poderia ter se calado, como de costume, mas usou a ocorrência como oportunidade para falar abertamente sobre o tema.
O tabu foi escancarado pela mídia, que anunciou um combate. É perceptível o caráter hermenêutico do acontecimento, capaz de descortinar os problemas da sociedade. Diversos veículos de comunicação convidaram especialistas em mente humana para falar sobre os perigos da depressão, que pode desembocar no suicídio como último ato desesperado. As doenças psíquicas foram abordadas sem pudor, sendo divulgadas suas causas, os tratamentos e a necessidade de procurar um médico antes de seu agravamento. Em seguida, com a divulgação de que o ator teve uma recaída, revelou-se o problema do vício na atualidade. A clínica de reabilitação não foi suficiente para que William se livrasse do álcool e da cocaína por completo. O que fazer nesses casos? Foi exatamente o que as reportagens tentaram responder para conscientizar seu público.
Por fim, uma mazela da classe artística foi publicizada ao mundo. Dias antes da morte de Robin Williams, alguns veículos já falavam sobre o resultado de uma pesquisa que associou psicoses e depressão a comediantes. As piadas seriam uma válvula de escape para a forma distorcida como veem a vida. Isso levou a análises sobre as tentativas do ser humano de camuflar suas mais profundas dores. Como diz Maria Cláudia Coelho, o sujeito psicológico e sua imagem pública habitam o mesmo corpo, mas não necessariamente são correspondentes. A assimetria entre o eu público e o eu verdadeiro, discutida por Chris Rojek, leva a sérias consequências, como a entrega às drogas, ao álcool e à prostituição. Quando o self real é totalmente degradado, o célebre pode recorrer ao suicídio. Isso remete à clássica reflexão de Émile Durkheim, que chama de “suicídio egoísta” a do indivíduo sem mais razão de ser na vida devido a pouca integração na vida social. Entre os mais propensos, estariam artistas. Daí, a comoção geral pela confirmação de que o comediante era um gênio do humor com uma alma desesperada. Relatos de que, quando não estava atuando, falava com uma voz baixa e trêmula explicam a opção pelo próprio enforcamento.
A chegada à velhice e a constatação da mortalidade também foram apontadas como possíveis causas deste suicídio. Williams havia sido diagnosticado com Mal de Parkinson, segundo fontes, o que pode ter acelerado seu ato final. Ora, um problema que ataca muitos na terceira idade é encarar o fim sem o apoio da sociedade. A solidão dos moribundos, como define Norbert Elias, ponto central da sociedade de hoje, em que vivemos à espreita da morte, mas preferimos deixa-la em escanteio.
É perceptível, então, a força do poder hermenêutico deste acontecimento específico. Apesar de sua afetação ter sido intensa, por se tratar de uma celebridade consagrada e querida, as questões levantadas pelo suicídio tiveram mais repercussão. Foi a chance da mídia de descortinar, pelo menos um pouco, este tabu.
Referências citadas:
ARENDT, Hannah. Compreensão e Política. In: ______. A dignidade da política. Ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. p. 39-53.
COELHO, Maria Cláudia. A experiência da fama. Rio de Janeiro: Ed., FGV, 1999.
DURKHEIM, E. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
RODRIGUES, J. C. Tabu da morte. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.
ROJEK, Chris. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
Juliana Ferreira
Bolsista de Apoio Técnico do Grislab
Paula Guimarães Simões
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG
[…] sobre a saúde mental e o sofrimento psíquico, suscitada por outro acontecimento recente – o suicídio do comediante Robin Williams, que se enforcou em 2014. Ao invés disso, perfilou um homem desviado, que pensou milimetricamente […]