Análise | Morte Violência e Crimes

80 tiros, 2 vítimas e a certeza de que não foi por engano

Ao serem confundidos com bandidos, Evaldo e Luciano perderam o direito à defesa e à vida. Foram julgados, condenados e executados por militares do exército à luz do dia.

Foto: Nacho Doce/Reuters

Era tarde de domingo, 07 de abril. Evaldo Rosa, 51 anos, ia com a família a um chá de bebê quando teve o carro metralhado por 80 tiros disparados por militares do exército, no bairro de Guadalupe, zona norte do Rio de Janeiro. Além do músico, que morreu no local, estavam no automóvel sua esposa, o filho do casal de 7 anos, a enteada e o sogro de Evaldo, que também se feriu. Outra vítima dos disparos foi Luciano Moraes, catador de materiais recicláveis, que morreu no hospital 11 dias depois.  

Na primeira nota divulgada, o Comando Militar do Leste afirmou que a patrulha teria reagido ao ataque de bandidos. No entanto, horas depois, teve que voltar atrás em sua versão e reconheceu os abusos cometidos. Segundo a família de Evaldo e testemunhas, os militares do exército continuaram os disparos mesmo depois de serem alertados que estavam atirando contra uma família. Dos doze homens que participaram da operação, dez permanecem presos.

Entre os quadros de sentido acionados pelo acontecimento cabe destacar a violência das forças de segurança e os riscos do fortalecimento dos discursos autoritários e punitivistas.

80 tiros é um número assustador, um sintoma do despreparo do exército para atuar como força policial – o que não é papel da instituição, mas até o final de 2018 foi uma realidade no Rio de Janeiro, devido à intervenção federal na segurança pública.  Também reflete um problema latente, que é o emprego da violência pelas forças de segurança. Segundo a Organização Human Rights Watch (HRW), de janeiro a novembro de 2017, o número de mortes por policiais durante ação, só no estado do Rio, chegou a 1.035, um aumento de 27% em relação ao ano anterior.

Outro ponto levantado é a questão da impunidade, já que os militares serão julgados por um tribunal militar, direito garantido por um decreto do ex-presidente Michel Temer em 2017. Podemos também questionar, neste caso, o Pacote Anticrime, apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, que, ao considerar como legítima defesa os excessos das forças de segurança decorrentes de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, dá brechas para que continue a prática do “atire primeiro e pergunte depois”. Ainda que o caso em análise não possa ser configurado como legítima defesa dos militares, devido à denúncia da família e testemunhas, é importante considerar que, na maioria das ações policiais, a grande testemunha dos boletins de ocorrência é a própria polícia que, ao apresentar sua versão dos fatos, pode mascarar abusos e ficar sob a proteção do argumento de legítima defesa.  

80 tiros é também o reflexo do fortalecimento dos discursos autoritários e punitivistas, provenientes do próprio governo. Tanto o governador do Rio, Wilson Witzel, quanto o presidente, Jair Bolsonaro, apostaram no discurso de tolerância zero à criminalidade como promessa de campanha.  Presente quase diariamente no Twitter, Bolsonaro permaneceu em silêncio sobre o caso por vários dias e só se manifestou depois de ter sido questionado pela imprensa. Em sua fala, apesar de lamentar o acontecimento, que denominou “um incidente”, eximiu o exército (instituição) da culpa e disse que os responsáveis serão investigados e punidos.

Por fim, é importante destacar que 80 tiros não foram um engano, mas um crime. De fato, o exército não queria matar um cidadão de bem. No entanto, naquele momento, por acreditarem que Evaldo e sua família – pessoas negras, pobres e da periferia – eram bandidos, atiraram para matar. Cabe perguntar até quando nossa sociedade vai ficar calada em relação a esse tipo de violência, eximindo as forças de segurança de qualquer culpa se o alvo for um criminoso. Enquanto o discurso da punição e do justiçamento continuar a ser bandeira, Evaldos e Lucianos continuarão morrendo nas periferias brasileiras por ou sem “engano”.  

Fabíola Souza
Doutora em Comunicação Social pela UFMG e pesquisadora do GRIS



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