Como o avanço da descriminalização do aborto na Argentina nos afeta? A pesquisadora Thaís Choucair fala a partir de dois sentimentos: a empatia com as argentinas avançando na conquista de direitos e a indignação com a situação no Brasil. Confira a segunda parte da análise a seguir. (A primeira parte está disponível no link).
“Ai, aiaiai
Aborto fica
Temer sai,
aiaiai”
Música cantada nos protestos pela legalização do aborto no Brasil
Apesar das similaridades históricas, a situação atual brasileira no que se refere à legislação do aborto é bem distinta ou mesmo contrária à da Argentina. Nos últimos anos, assistimos à tramitação de uma série de Projetos de Lei que buscavam tornar a criminalização ainda mais rígida no Brasil. É o caso, por exemplo, do PL 5069/2013, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha e outros doze parlamentares, que torna crime contra a vida qualquer propaganda ou distribuição de meios abortivos e a indução ou auxílio à gestante na prática do aborto – o detalhe é que não se sabe o que exatamente se encaixaria nessa “propaganda”. Outro aspecto importante e polêmico é que o PL também prevê a exigência de um boletim de ocorrência no caso de aborto em decorrência de gravidez fruto de um estupro. Um caso mais recente, de 2017, é o do chamado “PL do aborto”, que inclui na Constituição um trecho especificando que a vida começa na concepção, podendo fazer com que, na prática, mesmo tipos de aborto hoje inimputáveis no Brasil sejam passíveis de criminalização.
A percepção de que estamos longe de um avanço como o da Argentina causa revolta e indignação. De fato, duas diferenças pontuais podem ser destacadas dos dois contextos, brasileiro e argentino.
Em primeiro lugar, os movimentos feministas argentinos parecem ter dado um importante destaque para a pauta do aborto nos últimos anos, enquanto, no caso brasileiro, isso não ocorreu. Como lembrou Flávia Biroli no livro Aborto e Democracia, alguns episódios específicos exemplificam como as feministas brasileiras não priorizaram esse debate nas últimas décadas. É o caso da retirada do tema do aborto no documento apresentado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher à Assembleia Nacional Constituinte em 1988 e o recuo nas eleições presidenciais de 2010, quando os principais movimentos do país continuaram a apoiar, mesmo acriticamente, a então candidata à presidência Dilma Rousseff mesmo esta tendo se pronunciado diretamente à comunidade evangélica prometendo não se mover em favor do aborto.
Em segundo lugar, as e os representantes políticos argentinos parecem se posicionar de maneira muito distinta do que os brasileiros. Assistimos através de vídeos em redes sociais deputadas e deputados argentinos defendendo aberta e explicitamente o direito das mulheres ao aborto legal, seguro e gratuito. É o caso, por exemplo, da fala da Deputada Silvia Lospennato no dia da votação do Projeto de descriminalização na Câmara argentina, compartilhada milhares de vezes no Facebook[1] dizendo: “este é um grande dia para todas as mulheres. Nós mulheres estamos muito felizes de estar dando esse passo depois de um século. Não abandonaremos as ruas. Nós mulheres não nos esconderemos dentro de casa nem sentiremos medo. Nós mulheres vamos lutar pela igualdade custe o que custar. E hoje estamos conquistando o poder de decidir sobre nosso próprio corpo”.
Na minha pesquisa de mestrado, de 2017, Enquadramentos no Sistema Deliberativo: A discussão sobre o aborto no contexto do Projeto de Lei 5069, identifiquei que, embora na sociedade civil o problema do aborto fosse majoritariamente definido em relação às mulheres, na Câmara dos Deputados isso não ocorria: o problema era definido mais em relação ao feto e à sociedade como um todo, mesmo entre os deputados considerados progressistas nessa pauta. Além disso, durante a discussão do PL 5069 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), somente em 1% das falas houve uma defesa da descriminalização do aborto. E mais: mesmo considerando apenas os deputados contra o PL, ou seja, mesmo considerando apenas deputados considerados aliados nessa pauta, apenas 5% das falas argumentaram a favor da descriminalização do aborto.
“Do Norte ao Sul, a América se uniu
Legalizar o aborto na Argentina e no Brasil!”
Música cantada nos protestos pela legalização do aborto no Brasil
Apesar dos graves problemas mencionados e também de tantos outros – como o próprio golpe parlamentar -, o avanço das argentinas inspira e dá esperança para quem luta pelo direito ao aborto no Brasil. Observar a ação das nossas vizinhas, que encheram as ruas de Buenos Aires com milhares de pessoas, pode trazer uma nova força para essa reivindicação entre as brasileiras, e mais: nos mostrar que é sim possível exigir que nenhuma outra mulher morra em clínicas clandestinas, e que o direito de decidir sobre os nossos corpos seja pela primeira vez assegurado.
Thais Choucair
Doutoranda em Comunicação Social pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública/ Eme