O que a condenação e a hipocrisia de Danilo Gentili dizem e não dizem sobre nossa época.
Nos livros, nas telas, e até na vida real, palhaços nem sempre são associados a alegria. Eles podem ser tristes, assustadores, perigosos. Talvez o paradoxo se deva à própria natureza do riso: rir é a forma como os humanos – animais simbólicos – mostram os dentes. O riso muitas vezes é uma agressão simbólica.
Os palhaços não usam mais maquiagem, mas se apresentam de pé e de cara limpa para seu público, fazendo graça sobre o cotidiano. O stand-up, importado dos Estados Unidos, encontrou terreno fértil no Brasil. Este modo de fazer humor apaga os limites entre personagem e ator.
Uma das estrelas desse gênero, o apresentador Danilo Gentili, foi condenado à prisão, após ofensas recorrentes a Maria do Rosário, deputada federal pelo Rio Grande do Sul, filiada ao Partido dos Trabalhadores. O influenciador digital, nas palavras do professor Wilson Gomes, gravou e publicou um vídeo que parece movido pelo sentimento de ser inimputável: “que tal passar notificação no pênis do macho, em desafio, para mostrar a todos que a ela, à mulher, caberia apenas a submissão humana e sexual ao lobo alfa da nossa alcateia?”
Trinta e nove anos de idade não impedem que Gentili se comporte como menino mimado, fenômeno típico da República da 5ª série, e ainda faça piada da sentença – mostrando que nem mesmo a condenação vai parar sua fobia de mulher em forma de comédia. A defesa alega que o humorista não quis ofender, sendo que até quem o defende nas redes sociais contradiz essa versão, mas, claro, o “politicamente correto” é que é hipócrita.
A condenação do humorista pela ofensa causou imediata comoção entre colegas humoristas de diferentes orientações políticas e levantou a pergunta: é uma pena muito rígida, desproporcional? Não parece ser, quando o próprio Gentili, que tuíta “FALAR NÃO PODE ser crime. Nunca”, ao mesmo tempo processa criminalmente quem fala sobre ele. Processos que podem, segundo The Intercept Brasil, resultar em prisão. O caso lembra a máxima de Millôr Fernandes: “democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”.
Danilo encara tentativa de acordo e críticas dos colegas e do público como censura, enquanto censura e intimida quem o questiona, direcionando uma multidão de fãs alucinados a agredir qualquer um que ouse criticá-lo. Ainda se considera vítima, a partir de um ponto de vista tipicamente liberal. Numa entrevista, argumenta que “eu não me encaixo em minoria nenhuma”, para se contradizer em seguida: “o indivíduo é a menor minoria que existe e eu faço parte dessa minoria. Brigo para que o indivíduo tenha sua liberdade”.
Gentili faz parte daqueles que acusam a esquerda de nos dividir em “maiorias” e “minorias” para nos conquistar, mas já estamos divididos e conquistados quando reivindica-se a liberdade individual (para ofender e humilhar) acima da responsabilidade pelo que fazemos ao outro e à coletividade. Quem melhor para produzir e consumir irresponsavelmente, inclusive piadas, do que quem liga só para si?
O jornalista José Trajano – processado pelo Gentili por uma opinião – argumenta que seria bom se o engraçadinho prestasse serviços comunitários. Pode ser: servir à comunidade é uma chance de perceber que o mundo não se resume ao (único) indivíduo que defende.
De qualquer forma, encerramos essa análise quase com um pedido de desculpas, reconhecendo que o acontecimento Gentili poderia nos afetar menos. Só para ficar no exemplo de condenações à prisão, no mesmo país em que cotidianamente mais de 70% dos condenados por tráfico de drogas o são apenas com base no testemunho de policiais [1] e em que, comprovadamente em São Paulo, negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas [2], temos evidentemente coisas mais sérias para nos preocupar e ocupar coletivamente do que a condenação de alguém com tantas condições e recursos para se defender.
Gáudio Bassoli
Mestre em Comunicação Social pela UFMG e Apoio Técnico do Gris