Análise | Diário da Quarentena Mídia e tecnologia

ESPERO. ESTEJA. BEM.

A linha de telégrafo australiana Overland

Na leitura recente do reavivado romance “A Peste”, de Albert Camus, impactou-me fortemente o trecho, ainda no início do livro, em que os moradores de Oran, na Argélia, são tomados por um repentino sentimento coletivo de que estão isolados. Rapidamente o governo local endurecia o controle de entrada e, sobretudo, de saída da cidade. Não houvera tempo de despedir de alguém querido, de renovar votos ou planos, de repetir um ritual cotidiano.

Subitamente impunha-se um dentro e um fora e foi preciso inventar um “entre”: como se comunicar? Foram proibidas as trocas de correspondências, pois temia-se que as cartas se tornassem “veículos de infecção”. Já as ligações interurbanas tiveram que ser restritas a casos urgentes, como avisos de morte ou nascimento, pois as longas filas nos postos telefônicos colocavam em risco, para usarmos um termo atual, o isolamento social. Restaram, então, os telegramas. Nas palavras do narrador, “seres ligados pela inteligência, pelo coração e pela carne reduzidos a procurar os sinais dessa comunhão antiga nas maiúsculas de um telegrama de 10 palavras”.

Há poucas semelhanças entre a infraestrutura descrita no romance alegórico de Camus e a hiperconectividade da pandemia que nos aflige neste momento. Somente no WhatsApp, o tráfego de dados aumentou 40% no auge do isolamento em alguns países europeus. Proliferam as lives, a qualquer hora nos encaminham algo, nos marcam, em algum momento responderemos. Recomendam-se livros, filmes, discos, todo o excedente da produção cultural do qual enfim, quem sabe, podemos dar conta. As correspondências não nos fazem falta, embora, como escancara Judith Butler, os objetos continuam — e continuarão — a ser “superfícies de contato” que, no tocar da campainha, nos escancara que há pessoas vulneráveis em movimento lá fora. De todo modo, dentro de casa não é preciso limpar o celular com álcool gel.

De volta a “A Peste”: mesmo restritos às palavras telegrafadas, alguns moradores de Oran dedicavam-se a escrever. Sem saber se a mensagem havia chegado, com o tempo os obstinados limitavam-se a copiar e a reenviar “as mesmas informações e mesmos apelos”. O esforço era, sobretudo, para dar sinal de vida. Com o arrastar do isolamento, parecia não haver muito a ser dito — o tempo passava e as distâncias afetivas entre o dentro e o fora pareciam aumentar. Assim, revela o narrador, “o apelo convencional do telegrama nos parecia preferível”.

Hoje podemos enviar longos áudios, compartilhar inúmeros textos, links, memes, conversar por videoconferências. A maior parte destas trocas, no entanto, talvez não queiram ou possam dizer mais do que um dos telegramas lacunares dos argelinos narrados por Camus: “Estou bem. Penso em ti, Saudades”.

P.S.: “Traços humanos na superfície do mundo”, de Judith Butler, está disponível em https://n-1edicoes.org/042. Os trechos citados de “A Peste” foram traduzidos por Valerie Bumjanek (editora Record).

Carlos d’Andréa, professor do Departamento de Comunicação Social e PPGCOM-UFMG. Coordenador do R-EST – estudos de redes sociotécnicas e membro do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon)



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