Análise | Diário da Quarentena Festividades e megaeventos Mídia e tecnologia

O choro da Elba e o não-acontecimento do “São João no Nordeste”

O acontecimento global da pandemia atravessou de forma abrupta a ordem dos sentidos dos acontecimentos programados para acontecer nos âmbitos regionais e locais. As experiências das festas juninas no Nordeste possuem componentes individuais e coletivos, pois todos os anos mobilizam famílias, grupos e indivíduos da cidade e do interior. A pandemia redimensionou as práticas em uma outra experiência de estar junto pelas mídias, através das telas das lives juninas.

Elba Ramalho na live do dia 19/06. Foto: reprodução / Instagram

O inesperado acontecimento da pandemia atravessou a ordem dos sentidos dos acontecimentos programados para acontecer. Falo das festividades juninas tradicionais do Nordeste brasileiro. Lembro, quando adolescente, das fogueiras em frente às casas, dos vários palhoções no bairro, das quadrilhas juninas famosas nas ruas, da tradição de comprar a espiga de milho na calçada, do ritual de preparo das comidas típicas, das bandeirinhas, do balão, dos fogos de artifício, da roupa de matuto e, claro, das músicas de Luiz Gonzaga na rádio e nas vitrolas. Também lembro das casas de show, como a “Sala de Reboco” e o “Bar do Abacaxi” (este último próximo da UFPE, onde tocava forró universitário). Depois conheci o interior de Pernambuco (Caruaru) e da Paraíba (Campina Grande) e minha experiência se ampliou: bacamarteiros, artesanato, multidões dançando, a maior fogueira do mundo, o trem do forró. Lembro de ter visto Elba Ramalho cantar bem perto do público.

É enorme o potencial hermenêutico inscrito nas ações cotidianas, individuais e coletivas em cada local, envolvidas no fato social dos festejos juninos. A festa tem sentido para cada um, para cada localidade, mas revela um espírito em comum: o elogio da mistura excelente do rural com o urbano, produzindo memórias e paixões únicas.

Com a pandemia, as crises se instalaram nos pequenos comércios e entre os artistas locais, mas também arrefeceu o espírito da tradição das reuniões de família, do acender a fogueira, da aglomeração do forró (ou For All), da alegria das quadrilhas matutas, da comunidade que enfeita as ruas com as bandeirinhas. O “São João do Nordeste” está para além das atividades religiosas que envolvem os santos católicos. A pandemia descontinuou o espírito junino programado para acontecer. Por outro lado, na tentativa de reduzir essa descontinuidade, inventou-se um outro cotidiano: as lives juninas no Youtube. Pequenos e grandes artistas restauram um pouco desse espírito, em outro formato, estimulando reuniões na sala de estar de pessoas vestidas de matuto/matuta. Performar dançando forró e mostrar o bolo de milho nas redes sociais se tornou normal, bem como as lives de família no modo “galeria” do zoom ou aplicativos similares. São comportamentos que envolvem não só o uso do celular, mas da tevê e do notebook.

O desejo por interação movido pelo espírito do “For All” junino foi saciado com as tecnologias, que forçaram as pessoas a entenderem as senhas infotécnicas de uso dos apps.

No dia 19/6, assisti a live solo “Sabor de São João”, da Elba Ramalho. A artista chorou ao cantar um clássico junino: “Olha pro céu meu amor! Veja como ele está lindo! Olha pra aquele balão multicor que lá no céu vai subindo”. Após a música Elba pediu desculpas e justificou o choro. Disse que estava acostumada a cantar com interação presencial do público. O choro da Elba é o símbolo dessa dor no espírito junino, pelo não-acontecimento do “São João do Nordeste”. Mas a interdição do estar junto redimensionou uma outra experiência “For All” através das telas.

Ricardo Duarte Gomes da Silva, doutor em Comunicação Social pela UFMG; professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFV e jornalista



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