Entregadores de aplicativos de diversas localidades do mundo se mobilizaram, no dia 1º de julho, por melhores condições de trabalho. No Brasil, entre as pautas exigidas estavam o reajuste dos preços pagos por entrega, o fim das punições indevidas que bloqueiam os entregadores e os deixam horas sem trabalhar, a disponibilização de equipamentos de segurança, o apoio contra acidentes e a reformulação do programa de pontos.
No dia 1º de julho, entregadores por aplicativos se mobilizaram por melhores condições de trabalho, agravadas pela crise econômica ocasionada pela pandemia da Covid-19. Os atos receberam apoio nas redes sociais por meio da hashtag #brequedosapps, que convocava um boicote às principais plataformas de entrega como Ifood e UberEats
A maior parte dos manifestantes era composta por homens, negros, na faixa dos 30 anos, trabalhavam mais de 10 horas por dia e recebiam até R$ 2000 ao mês, segundo dados do Observatório da Precarização do Trabalho. Esse valor representa a renda bruta, nele não estão descontadas a manutenção do transporte e as despesas com combustível, equipamentos de segurança, caixas para armazenamento das entregas e alimentação do condutor.
Esse cenário revela um tipo engenhoso de exploração do capitalismo contemporâneo. Se antes o modelo vigente era do trabalhador que, por não possuir os meios de produção, era obrigado a vender sua força de trabalho para quem os detinha, agora um novo esquema surge. Nesse, o trabalhador continua vendendo sua força produtiva, mas também precisa investir em meios para gerá-la. E, embora seja o proprietário desses meios, ele continua não tendo o direito aos lucros, visto que é refém de uma empresa que controla digitalmente o processo produtivo, define as regras de participação, gratificação e punição. Essa empresa, mesmo não produzindo a mercadoria e não sendo proprietária do transporte, ainda assim fica com a maior parcela dos ganhos. Ser dono dos meios de produção já não garante mais o direito aos lucros.
Em um contexto de supervalorização dos ativos intangíveis, das organizações sem escritórios físicos, empregados e maquinários, se percebe que tudo isso contribui para rebaixar a materialidade do mundo à condição de menos importante, favorecendo novas ondas neoliberais sintetizadas nas ideias de trabalho imaterial e capitalismo cognitivo.
Contrariando o discurso atual, não foi a materialidade do mundo que perdeu importância; ela sempre foi um problema para as empresas, visto que gerava despesas causadas pela depreciação de uso. Enquanto a imaterialidade aponta para um cenário de expansão de lucros, a materialidade era um dos pontos que impedia a maximização dos negócios. Portanto, uma das formas de se livrar disso foi transferir a responsabilidade da materialidade produtiva para a classe trabalhadora, que agora precisa assumir os gastos de administrá-la para fazer cumprir a fetichização imaterial explorada pelos discursos atuais das marcas. O resultado disso leva ao ponto de que, ao solicitar uma entrega, o aplicativo consegue sobrepor, com recursos digitais e estéticos que envolvem bonificação, premiação, descontos e premiações, toda a materialidade e a exploração da produção e do transporte.
Acontecimentos como a greve dos entregadores são importantes porque fazem emergir as contradições do capitalismo. Se a digitalidade dos aplicativos foi uma solução rentável para seus criadores e prática para os usuários, o reflexo mais cruel pode ser verificado na materialidade dos corpos cansados dos entregadores. Corpos que entregam comida, mas têm fome; que levam o conforto, mas têm poucas horas de descanso; que garantem a segurança daqueles que não podem sair de casa, mas sofrem os riscos das doenças, dos acidentes de trânsito e da falta de segurança.
Para esses corpos, até o direto à greve, uma conquista histórica e uma forma de dar visibilidade a uma causa, representa também uma perda. Enquanto outras classes, em situação de paralisação, gozam da garantia de salários, a dos entregadores tem um peso direto na renda. O resultado é a precarização da própria greve. Enquanto estamos inebriados pela mágica do botão que traz à nossa casa o que se quer, corpos negros, pobres, endividados e explorados carregam em seus ombros a materialidade do mundo que o capitalismo tenta esconder.
Dôuglas Ferreira, professor do Departamento de Comunicação da UFMT e doutorando em Comunicação Social pela UFMG
Douglas, texto excelente. Essa greve é a materialização da teoria de Dardot e Laval. O trabalho precário mutila aqueles que ja são mutilados pelo capitalismo. Além de tudo, não tem nem condições legais para reivindicar e lutar. É a crueldade da lógica neoliberal que impõe “empreendedor de si mesmo” a todos indistintamente, dando a ilusão de conquista, mas que subjuga ainda mais.
Ivone, querida. Muito obrigado pela leitura. Esse texto tem muito das reflexões que fazíamos no grupo de estudo. Você é sempre uma inspiração.