Análise | Diário da Quarentena Internacional

América do Sul sem rumo, mais uma vez

No fim de maio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a América  Latina era o novo epicentro da pandemia do novo coronavírus, ultrapassando o número diário de contaminados por Covid-19 da Europa e dos Estados Unidos. Atrás apenas dos EUA no número de contaminados por Covid, o Governo Federal brasileiro seguia com o relaxamento das políticas sanitárias e de distanciamento social, minimizando a gravidade da pandemia. No começo de julho, o Brasil registrou mais de 1,7 milhão de pessoas contaminadas, 67 mil mortes e ultrapassou a média de 44 mil novos casos diários.

Imagem: Joaquín Torres García – Construtivo en cinco tonos (1945)

Conforme a Organização Pan-Americana da Saúde, considerando somente a América do Sul, o Brasil concentra na primeira quinzena de julho cerca de 64% dos casos confirmados de contaminação por COVID-19 e 69% das mortes . Se comparamos as populações desta região em números absolutos, a discrepância fica mais clara: o Brasil tem população de cerca de 212 milhões de pessoas e a soma dos onze países da América do Sul alcança, aproximadamente, a mesma quantidade. Ou seja, cabe à nossa metade populacional quase 70% das mortes na parte sul do continente.

Mesmo que se considere a pluralidade regional brasileira e o avanço da doença nos outros países vizinhos, a trajetória temporal do vírus na América do Sul já deixa um triste legado: a ausência de diálogo e de liderança política. Isso se agrava pelo entrecruzamento de históricas condições de desigualdade social na região e por uma insuficiente e heterogênea política de segurança sanitária. Essas desigualdades e a ausência de políticas públicas pesam, enormemente, no Brasil, diante do grande número de mortes e da falta de um discurso unificador por parte do Governo Federal.

Talvez a única convergência mais evidente entre os países esteja nas tensões políticas e leituras ideológicas divergentes sobre a pandemia. É ato contínuo lidar com os números diários e semanais de casos e óbitos e perceber, na comparação, como cada política reflete distintas realidades nacionais. Na Argentina, em isolamento severo desde o dia 20 de março, os esforços de preservação da vida parecem válidos, mas ainda assim há disputas e polêmicas internas sobre as medidas tomadas. Partidos e líderes de oposição já ensaiam um discurso de “tempo perdido”. Fato é que, na corrida contra esse mesmo tempo, uma vez que se olha historicamente para o presente, as diferentes realidades dos países no trato com a crise demonstram que há ainda muito o que se percorrer em termos de unidade regional.

A repercussão trágica sobre a postura do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, é consensual não apenas entre os seus críticos, mas entre aqueles que observam de fora a situação, como organizações multilaterais , representantes políticos e veículos de imprensa estrangeiros. Tal posição alienante e irresponsável reflete também o vazio de liderança da região e a possibilidade de um discurso unificador que abrandasse a tragédia que uma pandemia traria ao continente. No contexto atual, portanto, a crise do novo coronavírus escancara os limites antigos e atuais de uma frustrada integração regional e a ausência de um sentimento de cooperação internacional.

Não se trata, com isso, de realizar uma especulação – fosse há dez anos, estaríamos melhor que hoje diante de tamanha catástrofe? –, mas de, uma vez mais, deparar-se, por novas vias, com o sonho frustrado de uma América Latina unificada e solidária. Se há séculos a disputa pela liberdade paira pelo continente, de que adianta realizá-la apenas em sentido econômico ou reduzindo distâncias culturais? Há um grande caminho a percorrer na busca por uma relação integradora e igualitária entre os nossos povos. Porém, mais longo ainda vem se tornando esse percurso em face de uma doença que revela nossa secular banalização da morte.

Denise Prado, professora da UFOP e pesquisadora do Giro – Grupo de Pesquisa em Mídia e Interações Sociais
Frederico Tavares, professor da UFOP e pesquisador do Giro – Grupo de Pesquisa em Mídia e Interações Sociais



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