Análise | Questões raciais

De acontecimento em acontecimento: a perpetuação de um problema público no Brasil

Um conjunto de acontecimentos é tomado pela pesquisadora Paula Simões como revelador de que o racismo é um problema público que persiste no Brasil. O que cada uma dessas ocorrências diz de nossa sociedade – e de nós mesmos?

8 de março de 2014. Em uma das muitas homenagens celebrando o Dia Internacional da Mulher, a Riachuelo traz a público a campanha Semana da Mulher Brasileira 2014. A mulher que ali aparece e é “homenageada” pela marca é branca, magra, alta e é servida por uma mão negra, como bem analisa a crítica de Zaíra Pires.

26 de fevereiro de 2014. O psicólogo e vendedor Vinícius Romão de Souza é solto depois de passar 16 dias em uma cela de um presídio de São Gonçalo. Ele foi apontado pela copeira Dalva Moreira da Costa como o ladrão que roubara sua bolsa na noite do dia 10 de fevereiro, quando ela voltava para casa. Vinícius fora preso em “flagrante”, apesar de os pertences da mulher não terem sido encontrados com ele. Por falta de provas e diante do depoimento de Dalva de que poderia ter se enganado no reconhecimento de Vinícius como o autor do crime, a Justiça do Rio mandou soltá-lo.

12 de fevereiro de 2014. Era a estreia do Cruzeiro na Taça Libertadores da América contra o Real Garcilaso, em Huancayo, no Peru. O time mineiro perdia por 2 a 1 – resultado final da partida – quando o volante Tinga entrou em campo. Dali em diante, a cada toque na bola pelo jogador, a torcida do time peruano imitava um macaco nas arquibancadas.

Três acontecimentos diferentes que povoaram a cena midiática nas últimas semanas, mas que tematizam um mesmo problema público: o racismo. Esses são apenas alguns episódios recentes, mas vários outros poderiam ser lembrados (como o caso da australiana que recusou atendimento de uma manicure negra em Brasília ou o do garoto negro de 15 anos que foi preso a um poste no Rio de Janeiro). Manifestações racistas como essas e tantas outras que permeiam o cotidiano dos brasileiros iluminam um campo problemático arraigado na própria constituição da sociedade brasileira – e explicitam o poder hermenêutico dos acontecimentos.

O racismo é considerado crime no Brasil desde a Constituição de 1988. Assim, do ponto de vista legal, a questão é tida como “resolvida”; mas, na prática, um problema público grave como esse não se resolve por decreto. A desigualdade entre brancos e negros foi construída historicamente no país, apesar de todo o processo de miscigenação, que foi apontado como um caminho de inclusão racial nas obras clássicas de Gilberto Freyre (1977, 2003). Como destacam Avritzer e Gomes (2013), o intenso trânsito entre os grupos no Brasil teve como marca essencial a construção de relações assimétricas e desiguais, em que os negros ocupavam o lugar de subalternos.

Problema arraigado na sociedade brasileira, o racismo precisa ser tematizado e discutido, a fim de se encontrar outras formas de inclusão para além da referida miscigenação. Avritzer e Gomes (2013) apontam as políticas de ação afirmativa através de cotas nas universidades adotadas no país como um dos meios para a atribuição de um status de igualdade entre brancos e negros. De qualquer forma, é essencial fomentar o debate e a discussão em torno dessa questão, a fim de buscar (e encontrar) os caminhos que levem à supressão desse problema público.

Os acontecimentos acima enumerados iluminaram esse campo problemático existente no país e convocaram os sujeitos a se posicionar em relação a eles. É certo que acontecimentos sempre nos convocaram e públicos sempre se posicionaram em relação àqueles. Mas o que chama a atenção na sociedade contemporânea é como as vozes dos sujeitos são amplificadas através dos recursos possibilitados por redes sociais como o Facebook, o Twitter e o Youtube. Interpelados por esses e outros comportamentos racistas, inúmeros sujeitos se manifestaram nesses e em outros espaços, clamando pela desconstrução do racismo e da discriminação que permeiam as relações sociais em nosso país.

É certo também que, ao lado daqueles que contestam esses significados arraigados em torno das relações entre brancos e negros em nossa sociedade, há também aqueles, que, muitas vezes alegando brincadeira, reforçam tais atitudes racistas. É por isso que acreditamos que, de acontecimento em acontecimento, o racismo acaba se perpetuando como um problema público grave no Brasil – como bem demonstram os casos relatados acima. Entretanto, acreditamos também, que da mesma maneira, de acontecimento em acontecimento, de debate em debate, todo tipo de discriminação possa ser desnaturalizado em nosso país, construindo uma sociedade verdadeiramente democrática.

Referências:

AVRITZER, L.; GOMES, L. C. B. Política de reconhecimento, raça e democracia no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 56, p. 39-68, 2013.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/INL, 1977.

______. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2003.

Paula Guimarães Simões
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG



Comentários

  1. Terezinha Silva disse:

    Muito pertinente a relação apresentada na análise de Paula Simões entre inúmeros acontecimentos recentes, com repercussão em diferentes mídias, e o problema do racismo ainda arraigado no Brasil. Contrariando certos discursos que tentam fazer crer que no país não há racismo, esses acontecimentos escancaram o problema em várias dimensões do nosso cotidiano: práticas da publicidade; o mundo do futebol; as abordagens e prisões arbitrárias da Polícia – motivadas, muitas vezes, por preconceitos; as relações de trabalho e profissionais (como foi o caso, também recente, da forma como os médicos cubanos foram recebidos em algumas cidades brasileiras, em 2013, no contexto das controvérsias sobre o Programa Mais Médicos). Casos não faltam. Parece importante analisar se há, na reação dos públicos ao acontecimento, algum desdobramento em termos de uma efetiva ação pública (envolvendo sociedade civil, instituições governamentais etc), destinada a discutir formas de tratar o problema. Ação que consiga ir além da reação indignada através das redes e mídias.

    Terezinha Silva
    Professora Colaboradora do Departamento de Comunicação Social da UFMG e Pesquisadora do GRIS/UFMG.

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