Análise | Diário da Quarentena Mídia e tecnologia Morte

O luto na pandemia e a possibilidade de ressignificar a morte em memoriais digitais

O planejamento de postagens, de homenagens, de exposição da dor nas redes sociais virtuais era algo controverso, até chegar uma pandemia que nos impede de velar nossos entes e de ter algum consolo nos ritos presenciais. As redes ajudaram a demandar uma abordagem mais humanizada e menos asséptica.

Alguns memoriais do projeto Inumeráveis, disponíveis no Instagram @inumeraveismemorial. Foto: reprodução / Conexão Planeta

A popularização dos sites de redes sociais reconfigurou muitas práticas, afetou a sociabilidade e a circulação de informações. Quando nos referimos às experiências da morte e do luto, não é diferente. Em um contexto no qual se discute os termos de uso, a invasão de privacidade ou permanência de dados após a morte de quem possui um perfil de rede social, ou mesmo uma “comunicação póstuma online”, é importante falar de como as redes sociais estão atravessadas pela expressão do luto, sobretudo em tempos de pandemia, e como isso reverbera em meios de comunicação.

Trazer o luto e os rituais ligados à morte para as “linhas do tempo” dos perfis não se resume a episódios de espetacularização, mas traz à tona a complexidade própria de se processar a perda de alguém. A elaboração de narrativas sobre a morte nos ajuda a refletir sobre a finitude humana, a falta de controle em relação ao futuro, o novo cotidiano que se estabelece após a perda – e nem sempre isso era considerado algo “adequado” nas redes sociais: o planejamento de postagens, de homenagens, de exposição da dor era algo questionado até a chegada de uma pandemia que nos impede de velar nossos entes e de ter algum consolo nos ritos presenciais.

Ainda que as plataformas possam rememorar constantemente a situação de luto, sugerindo posteriormente lembranças e compartilhamentos de momentos tristes, elas podem se tornar um lugar de conforto, de consolo, de partilha e mobilização coletiva em torno da memória de alguém, seja em perfis anônimos, ou em iniciativas que surgem com a pandemia, como é o caso do projeto Inumeráveis, no qual voluntários escrevem um memorial dedicado às histórias de quem perdeu a vida após contrair o novo coronavírus. Além do site, as homenagens são publicadas também no Facebook e no Instagram do projeto.

A demanda por contar e humanizar quem “vira estatística” todos os dias é fruto de um trabalho poético, sensível, empático. Não precisamos saber se as pessoas tinham doenças crônicas ou comorbidades, mas se elas eram felizes, o que faziam no cotidiano, como viviam. Milhares de mães e pais, filhas e filhos, grandes amores de alguém, inesquecíveis e impossíveis de caber em um número cruel que aumenta assustadoramente todos os dias. Mais que isso, é uma recusa ao discurso jornalístico que passou a naturalizar dígitos a mais, números sem nome, sem rosto, sem família, sem sonhos.

O jornalismo não só entendeu o recado (e toda a crítica ao jeito asséptico de informar) como mudou o tom da cobertura no caso da Globo: em 6 de maio, ao anunciar 8.500 vítimas, William Bonner problematizou a banalização das mortes no Jornal Nacional; dias depois, a ilustração do coronavírus no JN foi substituída por fotos de vítimas reais, em uma tentativa de comover o público. A capa do jornal O Globo sobre as 10 mil mortes se converteu em um memorial impactante. O G1 também criou um memorial de vítimas, menos poético e afetivo que o do Inumeráveis, mas mais humano que as estatísticas publicadas até então. Em 20 de junho, o anúncio mais humanizado das 50 mil mortes pelo JN reverberou nas redes sociais, assim como em vários jornais, com destaque à capa d’O Estado de S.Paulo.

A melhor definição para tensionar a falta de humanidade com que as vítimas são tratadas nos discursos oficiais e na naturalização da morte do outro (que não nos afeta) está na descrição do Inumeráveis:

“não há quem goste de ser número
gente merece existir em prosa”

Tamires Coêlho, professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, doutora em Comunicação pela UFMG e jornalista



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