Análise | Internacional

O que vaza, acontece

O Wikileaks publicou neste mês o primeiro vídeo de Edward Snowden desde que recebeu asilo na Rússia. Esse foi mais um capítulo da trama iniciada no dia 6 de junho de 2013, quando o jornal americano The Washington Post e o britânico The Guardian publicaram denúncias de que o governo dos Estados Unidos mantinha, por meio da Agência Nacional de Segurança (NSA), um programa de espionagem eletrônica que há anos coleta informações de governos estrangeiros, empresas privadas e milhões de pessoas ao redor do mundo, deflagrando uma das maiores controvérsias internacionais dos últimos tempos. Ambas as matérias eram baseadas em documentos secretos cedidos por um informante em comum: Snowden, um especialista em informática de 29 anos que trabalhava para a NSA e se tornou o responsável por um dos maiores vazamentos de informação da história moderna.

Desde então, o desenrolar da controvérsia vem sendo acompanhado de perto, com a imprensa noticiando cada novo capítulo da história – o jogo de gato e rato na tentativa do governo americano de capturar Snowden, os abalos nas relações diplomáticas de diversas nações com os EUA, a desconfiança frente às empresas de tecnologia que estavam envolvidas etc. Chama à atenção a forma com que o caso emergiu na esfera pública, permitindo reflexões acerca do vazamento enquanto um acontecimento.

O vazamento, ao vir a público, conforma um evento e possui uma inerente potencialidade crítica. Ele não instala necessariamente uma controvérsia, mas atravessa e desestabiliza controvérsias públicas correntes ou mesmo desperta as latentes. Esse último aspecto é especialmente importante, já que o vazamento aponta para a existência de uma rede de eventos que se passavam em segredo, desvelando tramas que estavam por detrás dos panos, aspectos que até então eram mantidos longe dos olhares públicos devido a certos interesses. O que vem a público, escapando de sua esfera de segredo, acaba por adquirir consequências sob a forma de denúncias. Assim, todo vazamento implica a geração de um evento de denúncia.

Tal evento não deflagra apenas possíveis reações dos públicos, mas também uma sequência de ações de vários atores, especialmente das instituições. Pode ser, assim, o marco zero de um enredo: espera-se, a partir do vazamento, que os outros elementos componentes daquela trama sejam investigados e desvelados. Aparece como denúncia, mas não completa: as gotas que vazam são indícios que requerem mais explicações, dando a impressão de serem uma peça em um imenso quebra-cabeças. Nessa montagem, a mídia se empenhará também junto com os outros atores na busca dessas peças e na construção da lógica explicativa da trama. O movimento é, assim, incremental: poucos pingos que vazam tendem a se tornar uma torrente.

Um elemento confere uma potência ainda maior nesse movimento: o apelo da ideia de quebrar o segredo. O vazamento invoca a noção atraente da violação de um código secreto e da descoberta do que está por detrás da cortina – o que gera interesse e fascínio. Ao apresentar as chaves desse código ou algum elemento decifrador, produz nos públicos fantasias sobre o que permanece oculto, capturando a atenção. Torna-se, assim, um mote para a construção de uma narrativa sedutora, propícia a especulações de toda sorte.

No caso da NSA o vazamento foi fruto da ação de uma pessoa que decide tornar públicas determinadas informações secretas. É possível tecer planos para deliberadamente interferir na realidade, projetando uma trama (ou tramoia?), ou seja, introduzir algo não esperado, uma ruptura, uma reviravolta. Um vazamento como o que Snowden protagonizou pode ser pensado como uma dessas intervenções.

O vazamento tanto pode ser acidental como também uma tática do fraco (Certeau, 1994), uma forma de adquirir potência na denúncia e abrir possibilidades de desvelar elementos da estratégia do forte (que vindas a público podem ser moralmente reprováveis). O vazamento, nesse sentido, evoca uma moralidade pública e só ai pode fazer sentido. Para governos e organizações, a “desmoralização” é um fator crítico, no sentido de que é um golpe em sua reputação e nas relações com os demais atores.

Na ampla trama que se desenvolve, novos elementos entram em jogo a cada momento. Nesse recente capítulo marcado pela publicação do Wikileaks, um sentido moral ganha força centrado na figura do próprio Snowden – tendo seu ato reconhecido como heroico e exemplar: “Acreditamos que outras pessoas da mesma qualidade moral seguirão seu exemplo iluminando zonas escuras e trazendo à tona crimes que colocam em risco nossos direitos civis como cidadãos livres”, afirmou um ex-oficial da CIA, citado pelo Wikileaks.

Uma nota final: o inimigo número um da Agência Nacional de Segurança norte-americana foi contemplado com o prêmio Sam Adams, concedido anualmente por um grupo de agentes de segurança aposentados dos Estados Unidos.

Foto: The Guardian / Reuters

Márcio Simeone Henriques e Daniel Reis Silva
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG / Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisadores do Gris/UFMG

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.



Comentários

  1. Terezinha Silva disse:

    Análise e comentários muito instigantes! O “evento de denúncia” seria uma outra forma de nomear os acontecimentos geralmente chamados de “escândalo”? Ou seria algo diferente? A análise também me levou a pensar (assim como André) nos escândalos. Parece-me que o vazamento promovido por Snowden tem todas as características constitutivas de um escândalo, apontadas por autores como Thompson, Ari Adut e De Blic e Lemieux: a transgressão a uma norma ou valor considerados importantes em uma dada sociedade; sua publicização; reações de públicos desaprovando a violação; e consequências para indivíduos e instituições implicados (que podem ir desde perdas materiais e simbólicas, de confiança etc. até processos de transformação/evolução de normas). O que torna possível a conformação de um escândalo é justamente a publicização da transgressão – daquilo que antes era restrito a um público menor, às regiões de fundo (Goffman) – para públicos mais amplos, que reagem desaprovando tais práticas.
    Tais acontecimentos são, portanto, bem reveladores das “aparências” mencionadas por André – até mesmo das hipocrisias que constituem as relações e a vida social. Mas, dependendo das reações, ações e apropriações por parte dos públicos (inclusive as mídias e suas narrativas), tal acontecimento/escândalo pode ter uma positividade, ou a “potência” citada por Márcio e Daniel. Desvelando como é, ele pode abrir caminho para uma transformação e aperfeiçoamento das práticas, das normas, das instituições… Uma questão importante é verificar como a transgressão ou problema revelado será tratado.

  2. Nísio Teixeira disse:

    “Dentro de um grupo, o pacto firmado na veracidade será tanto mais adequado quanto mais tenha por norma o bem de muitos e não o de poucos. Pois os enganados, isto é, aqueles a quem prejudica a mentira, formarão sempre uma maioria frente ao mentiroso que tira proveito do engano. Por isso a ‘ilustração’, encaminhada a suprimir as falsidades que atuam na vida social, tem um caráter marcadamente democrático.” (SIMMEL, 1939: 337,338)
    Nesse texto do George Simmel, El secreto y la sociedad secreta. In. Sociologia: estudios acierca de las formas de
    organizaciòn. Buenos Aires, Espasa-Calpe: 1939. Cap. 5. p. 331-392. podemos encontrar ecos do que traz a boa intervenção do Márcio e Daniel. Acho que o texto de Simmel é uma chave para refletir o episódio como ver nele uma possível interface com a discussão acerca das biografias: afinal naquele outro caso não se discute a privacidade como segredo?
    Sigamos, portanto.
    Nísio

  3. André Melo Mendes disse:

    Um aspecto importante a ser pensado sobre esse caso é como os países espionados reagiram ao episódio. Salvo alguns mais ingênuos, todos sabem que existe espionagem internacional em todos os níveis, inclusive na web, que é um ambiente propicio a esse tipo de atividade. Entretanto, a denúncia do S. levou a uma onda de reações que me parecem direcionadas ao público em geral e talvez até em busca de alguns ganhos no campo das relações diplomáticas. Esse acontecimento me lembrou muito o caso do escândalo do mensalão. Naquela época, tive a oportunidade de ouvir discursos de muitos colegas que se diziam surpresos pela existência de um caixa dois, prática que é proibida, mas que é notoriamente realizada em diversos setores da economia e política até hoje.
    Me pergunto se surpresa com relação a esses acontecimentos é uma espécie de teatro para preservar as aparências ou se, realmente, as pessoas se surpreenderam com esses eventos e, se a partir dessa surpresa, haverá algum tipo de mudança.

  4. Frederico Tavares disse:

    O vazamento de informações como um evento-denúncia é, analiticamente, bastante profícuo, e traz consigo uma dimensão ética que merece ser pensada. Se o caso Snowden é metaforizado como a ponta de um iceberg, há nele algo “submerso” que coloca em evidência não apenas uma inversão de valores na eleição do secreto e de quem pode com ele lidar, mas também os modos de ser da grande imprensa. Vazar dados como tática de resistência pelos “sujeitos ordinários”, acaba por solicitar a problematização acerca das potências que permeiam a visibilidade dos meios de comunicação. A mídia é fundamental na construção de narrativas que contam o que está para além da denúncia. Mas essas mesmas narrativas possuem tramas envoltas em relações de poder e dinâmicas institucionais. Ao eleger o que e como desvelar, a mídia deve fazê-lo segundo preceitos morais, para não tornar-se, ela mesma, um acontecimento.

    Frederico Tavares
    Professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto
    Pesquisador do Gris/UFMG

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