O sentimento de perda iminente junto à impossibilidade de celebrar alegrias ou de viver o luto através de rituais específicos pode levar a um esgotamento psíquico e afetar significativamente o emocional neste momento de pandemia. É importante ser gentil com a própria dor.
O isolamento social vivenciado nessa quarentena vem provocando uma série de agravos à nossa saúde mental, intensificados tanto pelo assombro que o contágio da Covid-19 oferece quanto pela iminência da morte de si e dos seus. A cada internação ou morte anunciada, é como se pudéssemos enxergar em nós mesmos a nossa própria finitude. E, embora o fim da vida seja racionalmente um fato certeiro, o desejo de adiamento se faz presente.
Tudo isso amedronta, visto que a sensação de impotência diante do cenário atual gera incertezas de diversas ordens: seja pela dificuldade de viver um ritual familiar importante, seja pela interrupção repentina da vida, seja pelos efeitos nefastos da doença no corpo, seja, ainda, pela ausência de uma gestão governamental adequada da crise, que tem dado lugar à negação e à negligência.
A vivência restritiva que a Covid-19 nos impõe, assim, impossibilita a realização dos rituais de passagem que dão sentido à existência ou àquele vazio provocado pela ruptura. Ritos que marcam o que se inicia – como aniversários, casamentos – ou o que se finda – como velórios – são caminhos possíveis de expressão do luto, da dor, da alegria como forma de elaborar o vivido e entrar em contato com os sentimentos que afloram a partir do que nos acontece, buscando compreender aquilo que se modifica internamente e estruturalmente.
Há inúmeras formas convencionadas de manifestação dos ritos de passagem, em diversos povos e culturas. O ocidente, ao longo do tempo, criou fatores limitantes de experienciar a densidade dos rituais, devido à imposição de determinadas crenças religiosas em detrimento de outras. Com isso, houve um esvaziamento no culto às dimensões ancestrais e na ligação direta com a natureza. Em contrapartida, evidenciam-se os rituais realizados por diferentes etnias africanas e indígenas, em que são utilizadas simbologias e cerimônias para retorno à ancestralidade e resgate da força vital com os antepassados, visando estabelecer conexões com o presente e elo com o futuro.
Celebrar mudanças em vida, como nascimentos, formaturas e aniversários traz à tona manifestações de afeto, euforia e pertencimento; já a ausência dessas celebrações revela um lado sombrio e solitário da existência. Por outro lado, viver novos papéis sociais em decorrência do coronavírus (mudanças de status para viúva, órfã, perda de um filho) exige uma reinvenção daquilo que se é possível ser e, por isso, a importância dos rituais como meio de atenuar as dores causadas pelo sofrimento, perda e desalento.
Conviver com o sentimento de perda como um risco potencial e real afeta também significativamente o emocional e, por vezes, o físico. A impossibilidade de se viver o luto é mais uma perda que se soma e pode levar a consideráveis comprometimentos e agravos da saúde mental. Velórios e sepultamentos são locais autorizados para a manifestação de sofrimento, choro e dor; lugares pelos quais emergem a reflexão e o ímpeto de dar sentido à morte ou ao medo dela instalado.
Nesse sentido, os rituais permitem que os níveis simbólicos, e até inconscientes, possam transpor o que está no limite do alcance das palavras e da ordem do desejo. Além disso, ritos podem permitir dirimir sentimentos comuns de negação da perda ou morte, e dar vazão a um apaziguamento interno daquilo que está posto.
Os sintomas de adoecimento psíquico transbordam em meio às adversidades e às transições que padecem o corpo e a mente no desenrolar da vida frente a uma pandemia. Lidar com transformações tão bruscas, sem mesmo haver tempo para assimilá-las, pode levar a um esgotamento psíquico intensificado por angústias e sofrimentos.
Por mais restritivas que sejam as alternativas disponíveis para realizar os rituais de passagem nesse cenário, é válido não deixar de fazê-los. Entender que se algo para trás ficou, ou se não foi possível estar com o ente querido nos seus primeiros ou últimos momentos de vida, o caminho pode ser aceitar a impossibilidade da presença física como algo que se fez imperioso acontecer e não por desejo pessoal. É importante ser gentil com a própria dor. Acalente-a!
Realizar pequenas cerimônias de despedidas, de chegadas e de saudades, ainda que simbólicas ou reduzidas, pode contribuir para a lembrança de que a dor é fruto de algo bom que fora vivido outrora. Compreender os ganhos, evocar boas lembranças dos entes queridos também faz parte da elaboração do luto. Convoque a todos, inclusive as crianças, para que também entendam que algo ocorreu. É uma oportunidade de aprendizado até mesmo para elas. A vida exige lutas diárias para que o encontro com o que há de mais enlutado dentro de si seja sereno, gradual e resiliente.
Ana Luísa Coelho Moreira, psicóloga, doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB)
Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação pela UFMG e pesquisadora do Gris