Análise | Diário da Quarentena Internacional

Viver a pandemia no exterior

Não bastassem a incerteza e o medo vividos em Paris, convivemos com a angústia de ver a maior autoridade brasileira ignorar as recomendações da Organização Mundial da Saúde e continuar se referindo ao coronavírus como uma “gripezinha”.

Patinhos atravessam o boulevard Tour-Maubourg, em Paris. Jonathan Sarago / MEAE

Há poucas semanas, o coronavírus parecia uma ameaça improvável na França. Após uma virada de ano de grande mobilização social contra a reforma da previdência defendida pelo governo de Emmanuel Macron — cujos protestos paralisaram por quase dois meses a maioria das linhas de metrô e de ônibus —, fevereiro foi o mês em que a vida dos franceses parecia “voltar ao eixo”. As notícias sobre o Covid-19 apareciam nos jornais como uma realidade longe da nossa. As autoridades sanitárias e governamentais pediam para que as pessoas cobrissem o rosto com o cotovelo ao espirrar ou tossir, lavassem as mãos com frequência e evitassem os apertos de mão e os dois beijinhos ao “faire la bise”. Contudo, tais recomendações não deixavam transparecer uma situação alarmante e eram tratadas com humor por alguns.

Em março, as medidas de precaução começaram a se acentuar, mas o discurso oficial era ambíguo. Ao mesmo tempo em que o governo enfatizava a disseminação do vírus pelo país, as campanhas para as eleições municipais, ocorridas em 15 de março, movimentavam as cidades. Nas rodas de conversas, a opinião dominante era: se o vírus fosse tão perigoso, não viveríamos como se não fosse nada. Mas se a ficha começou a cair a partir de 12 de março, com o fechamento de todos os estabelecimentos escolares, o clima de medo se instalou de fato dois dias depois, quando Macron anunciou que todos os bares, restaurantes e cafés não abrissem mais até segunda ordem. Paris é uma cidade da rua. Muitas pessoas moram em apartamentos pequeníssimos e pagam uma fortuna de aluguel. Por isso, a decisão de privar o parisiense do seu café em uma “terrasse” foi chocante.

A ruptura da normalidade veio efetivamente com o anúncio do confinamento total de 15 dias, decisão prolongada por duas semanas, mergulhando o país na incerteza. Atualmente, só podemos sair de casa para fazer o estritamente necessário, como ir ao mercado, farmácia ou médico, e munidos de uma declaração de compromisso de honra. Lá fora, o clima é estranho. Não nos olhamos nos olhos, desviamos das pessoas com medo de nos contaminarmos e muitos usam luvas e máscaras. As ruas estão silenciosas e não são mais o lugar onde queremos e gostamos de estar. E vivemos tudo isso como imigrantes. Em momentos de incerteza e de reclusão como este — semelhante àqueles dos atentados —, o Brasil parece ainda mais longe. O telefone e o computador nunca desligam, e por eles acompanhamos o Covid-19 ganhar outros países, inclusive o nosso. Estamos aqui, mas nossos familiares, amigos e pessoas queridas estão no Brasil. Pior, no Brasil de Bolsonaro, um presidente que vai na contramão de todas as autoridades sanitárias internacionais ao considerar um vírus que tem feito milhares de mortos mundo afora como uma simples “gripezinha”. Ouvir isso de alguém que deveria ser o primeiro a cuidar de seu povo, sobretudo em um país tão desigual quanto o nosso, torna a situação ainda mais angustiante: à incerteza da Paris que encontraremos lá fora quando a epidemia estiver controlada soma-se o medo das condições do Brasil de atravessar tal crise nas mãos de um governo guiado por “convicções”.

Como a doença chegou mais cedo na França, estamos avançados na escala da epidemia em relação ao Brasil. E o cenário não é nada animador. No dia 27, batemos o recorde do número de mortos em 24 horas. Os hospitais estão cada vez mais perto da superlotação e a guerra contra a pandemia parece longe do fim. Independente de posicionamentos políticos e diante da rapidez do contágio, uma coisa é consenso aqui: ninguém questiona a necessidade do distanciamento social como forma de combater o avanço da doença e evitar a sobrecarga de hospitais e agentes da saúde. Então, para quem tem a opção, o apelo é simples: fique em casa. Esperamos que os governantes do Brasil, diante dos efeitos devastadores da epidemia pelo mundo e da possibilidade de aprender com os países mais afetados, ajam com a razão e antecipação para evitar que o pior dos males aconteça aos brasileiros.

Camila Cesar, Professora substituta na Université de Lorraine, na França. Doutora em Ciências da Informação e da Comunicação pela Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 e pela UFRGS.
Camila Salles, Doutoranda e Mestre em Ciências da Informação e da Comunicação pela Université Sorbonne Nouvelle Paris 3



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