Análise | Diário da Quarentena Internacional

Pandemia enfrentada a la Argentina

A Argentina implantou a quarentena total no início dos casos. Junto a isso, o governo aprovou medidas para proteger a população e resguardar as médias e pequenas empresas. Dois meses depois, o país começa a voltar à normalidade pensando em como enfrentar também o aumento da pobreza e a dívida externa.

Alberto Fernández assumiu a presidência em dezembro de 2019 com dois grandes desafios: a dívida com o FMI, que quase engolia todo o orçamento do país, e o aumento considerável da pobreza nos últimos anos. Pois eis que em 3 de março outro grande desafio pousa em território argentino, com o primeiro caso reportado de Covid-19. Poucos dias depois, já há a primeira morte.

Eu, meu companheiro e nossa filha, a única argentina da família, nesse momento estávamos visitando familiares no Brasil, que já tinha tido seu primeiro caso. Enquanto os números cresciam em ambos os países, fomos acompanhando o aumento das medidas restritivas na Argentina. Recomendava-se não compartilhar o mate e em menos de 10 dias do primeiro caso o país fechou fronteira com os epicentros daquele momento — China, Irã e Europa. Um  dia antes de viajarmos as escolas foram fechadas. Voamos sem saber como seria a nossa chegada. Pousamos de volta em Buenos Aires no dia 13 de março e tivemos que informar sobre os locais de trânsito fora e dentro da Argentina, sobre sintomas. Fornecemos dados pessoais para facilitar o monitoramento. A saída do avião foi com policiais e enfermeiros na porta, medição de temperatura corporal por câmeras. Estávamos com uma bebê, e a temperatura dela foi medida especialmente. Chegamos em casa num misto de alívio, por sentir que estávamos em um país que cuidava dos seus, e medo, por imaginar o que passaria com os nossos no Brasil.

Poucos dias depois, a lista dos países de risco aumentou e estava ali o Brasil. Recebemos mensagem do governo dizendo que deveríamos ficar em quarentena por termos voltado de lá e, no  caso de infringi-la, responderíamos a um processo penal. Na sequência, o país fechou as fronteiras internas e externas e entrou em quarentena total obrigatória. Os casos confirmados eram cerca de 200.

O presidente foi enfático em dizer que a economia pode se reerguer, mas uma vida perdida é para sempre. Daí em diante começaram a ser expedidas uma série de medidas para que fosse possível que a população ficasse em casa: benefício emergencial; empréstimos às médias e pequenas empresas a juros reduzidos condicionados à não demissão dos trabalhadores; distribuição de alimentos; incentivo ao home office; abono aos trabalhadores da saúde; proibição ao corte de luz, gás e água, aos despejos e ao aumento dos aluguéis. Os aparelhos estatais de combate à violência contra mulher e à população LGBTQI continuaram abertos e começaram campanhas de sensibilização, já prevendo um possível aumento dos casos em meio à quarentena.  foi mantida a quantidade de ônibus, para que o transporte de trabalhadores essenciais continuasse sem perigo de aglomerações.  Foi acelerada a construção de dois hospitais que haviam sido paralisadas. Policiais verificam a motivação de estar pelas ruas e, se não houver justificativa plausível, é aberta uma causa penal.

A expansão do vírus se iniciou nos bairros nobres de Buenos Aires, mas atualmente tem aumentado nas áreas de habitações precárias. Na conhecida Villa 31, perto da rodoviária de Retiro, em meio à quarentena e já com casos reportados de Covid-19, moradores ficaram por 12 dias sem água. Uma das lideranças, Ramona Medina, da organização social La Poderosa, gritou pela falta de água, que impedia a higiene básica recomendada, mas o chefe de governo da cidade de Buenos Aires, Horacio Larreta, demorou demais para ouvir. Ela se infectou por Covid-19 e veio a falecer neste último domingo, 17 de maio. Já voltou o fornecimento de água na região e o governo tenta controlar a expansão de casos fazendo o teste nas pessoas que tiveram contato com os infectados e infectadas.

Em uma comparação dentro do continente americano, onde a Argentina é a sétima em número de contágios e mortos, atrás dos Estados Unidos, Chile, México, Brasil, Bolívia e Peru, Fernández anunciou, no dia 23 de maio, a extensão da quarentena até o dia 07 de junho, após um período de relativo afrouxamento da quarentena acompanhado de um aumento significativo dos casos. Com a aproximação do pico da pandemia, aumentaram-se as restrições na área metropolitana de Buenos Aires, que concentra grande parte dos casos do país, em especial nas zonas de maior circulação de pessoas. Seguem abertos os comércios dos bairros, com exceção das lojas de roupas e estabelecimentos que prestam cuidados pessoais de contato direto, como cabeleireiros e clínicas de massagens. Mantém-se obrigatório o uso de máscaras e o distanciamento social nos deslocamentos, que devem ser feitos a pé, em bicicleta ou patinete. No sábado ou domingo é permitida uma saída com as crianças, por uma hora, a até 500 metros da sua residência. Os bairros mais vulnerabilizados são o foco de atenção do Estado, com aumento dos teste, do fornecimento dos alimentos, da segurança e isolamento e caso de contágio.

A pandemia foi contida, mas os demais monstros não deixaram de existir: o governo está fazendo uma força-tarefa na distribuição de alimentos e na manutenção dos restaurantes populares no combate à fome. Também  lançou um programa de incentivo à construção de unidades habitacionais para aquecer a economia, enquanto espera a resposta dos credores sobre sua proposta responsável de pagamento da dívida externa. Certamente enfrentar a pandemia priorizando a vida é possível mesmo em um país com tantas outras batalhas a enfrentar.

Bárbara Roberto Estanislau, doutoranda em Ciências Sociais pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – FLACSO Argentina




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