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Covid-19 e comunidades quilombolas: a reedição de uma política genocida

A precariedade dos serviços públicos nos territórios quilombolas e a subnotificação dos registros de Covid-19 têm exposto ainda mais essas comunidades ao coronavírus e aos seus efeitos. Junto à determinação para a remoção de quilombolas de Alcântara (MA) em plena pandemia, ficam evidenciados o racismo institucional e a reedição de uma política genocida contra essa população.

Foto: Ana Mendes / ISA

Diversos levantamentos já produzidos, seja pela imprensa, seja por instituições de pesquisa ou organizações da sociedade civil, constatam que a pandemia do coronavírus intensifica as desigualdades já existentes e expõe ainda mais grupos vulnerabilizados socialmente à Covid-19 e aos seus efeitos, que vão de impactos sociais e econômicos à morte. Com os quilombolas brasileiros não tem sido diferente.

Em documento publicado no dia 22 de abril, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) denuncia um rápido alastramento da doença nessas comunidades, acelerado pela falta de estrutura em assistência à saúde, pelas precárias condições de acesso à água, energia e saneamento básico (o que dificulta as medidas de higiene recomendadas), pela invisibilidade e subnotificação dos registros e pela dificuldade no acesso aos exames.

Monitoramento realizado pela própria CONAQ identificou que, até 22 de abril, 6 quilombolas haviam sido mortos por Covid-19 no Brasil; já até 13 de maio foram 21 óbitos confirmados, dois em investigação, 128 casos da doença e mais 36 em monitoramento. O estado do Amapá, que registrou a primeira morte entre quilombolas, é também o que mais registra casos: 41% dos óbitos mapeados são de lá.

De acordo com a CONAQ, o Brasil conta atualmente com mais de 16 milhões de quilombolas distribuídos em cerca de 6.330 comunidades. Dessas, 3.432 são certificadas pela Fundação Cultural Palmares, órgão federal responsável pelo reconhecimento necessário para dar início ao processo de titulação definitiva dos territórios (de 1988 até agora, apenas 160 territórios que abrangem 303 comunidades foram titulados). Diante da crise que também impacta financeiramente as comunidades, várias delas se organizaram e, por meio das plataformas digitais, lançaram campanhas de financiamento coletivo como forma de apoio durante a pandemia.

Mas, não bastasse a situação de vulnerabilidade potencializada pelo coronavírus e seus efeitos, a população quilombola é surpreendida em plena crise com a Resolução nº 11 do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, de 26 de março de 2020, determinando, dentre outras ações, a remoção de famílias quilombolas da cidade de Alcântara (Maranhão) para efetivação do Centro de Lançamentos de Foguetes, que deve atender a acordo com o governo dos Estados Unidos, em vigor desde  5 de fevereiro deste ano. A medida atingiria 30 comunidades (cerca de 800 famílias), de acordo com o Movimento dos Atingidos pela Base Especial de Alcântara (Mabe).

A luta das mais de 150 comunidades quilombolas de Alcântara pelo direito ao território ancestral ocupado por descendentes de escravizados desde o século XVIII não é recente. De acordo com relatório do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o conflito daquelas comunidades com o Estado, por meio da Aeronáutica, dura mais de 30 anos, uma vez que a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) se deu ainda na década 1980. Na época, 300 famílias foram deslocadas sem qualquer consulta, e tiveram suas vidas profundamente impactadas pela remoção, pois as áreas de pesca, principal fonte de subsistência e renda das comunidades da região, foram reduzidas e restritas. O caso já rendeu denúncia contra o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e à Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Quanto à Resolução nº 11, além do repúdio das organizações quilombolas, de intelectuais, artistas e de diversas organizações da sociedade civil, como ISA, Inesc e SBPC, um pedido de informação da Defensoria Pública da União (DPU) recomenda a revogação de trechos da Resolução e uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF) solicita à União que não proceda com o deslocamento das famílias. No dia 12 de maio, uma decisão da Justiça Federal no Maranhão suspendeu todas as ações do governo federal relacionadas à realocação das comunidades de Alcântara. Porém, a sua publicação em meio a uma crise sanitária mundial é bastante reveladora sobre como o Estado brasileiro age em relação à população quilombola.

Tanto a ausência do Estado nessas comunidades quanto a determinação para a remoção de famílias em meio à pandemia — cuja principal medida de contenção é o isolamento — dizem muito sobre as dinâmicas do racismo no interior das instituições brasileiras. Em se tratando de um grupo historicamente perseguido e vitimado por tentativas oficiais e declaradas de extermínio, essas ausências e ações demonstram a reedição de uma política genocida contra a população negra quilombola, que persiste e se reinventa através dos séculos.

Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris



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