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O coronavírus e a “balbúrdia”: entre o anticientificismo e a visão tecnicista da ciência

A pandemia de coronavírus acirrou ainda mais as disputas entre o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, e as universidades públicas, que lutam para sobreviver em meio aos cortes de recursos e ao anticientificismo bolsonarista

Rodolfo Buhrer / Reuters

Não é novidade que a gestão de Abraham Weintraub, Ministro da Educação do governo Bolsonaro, é marcada pelo antagonismo às universidades públicas, com cortes de recursos e acusações infundadas sobre plantações de maconha. Mesmo a pandemia global de coronavírus, um forte argumento pelo investimento científico, acabou sendo apropriada para canalizar os ataques: se antes Weintraub se queixava da “balbúrdia” generalizada das universidades federais, agora instrumentaliza as ciências exatas e biológicas para demonizar as humanas e sociais.

Em seu golpe mais recente, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) reduziu as bolsas de pós-graduação por meio da portaria nº 34, de 9 de março. Imposta em meio à reorganização social para o combate ao coronavírus e após a promessa de concessão das bolsas por parte dos programas de pós-graduação, a medida mobilizou protestos e uma recomendação do Ministério Público Federal pela revogação. Em 2019, 8 mil bolsas já haviam sido cortadas e a nova portaria intensificou o prejuízo à ciência brasileira.

A Capes, inicialmente, afirmou que não houve cortes e que apenas corrigiu distorções –  mas um levantamento preliminar da Associação Nacional de Pós-Graduandos já identificava o corte de mais de três mil bolsas, e muitas foram reclassificadas como “bolsas empréstimo”, a serem cortadas quando o bolsista vigente finalizar a pesquisa. Após essas contestações, a Capes admitiu que o novo modelo eliminaria cerca de 6 mil bolsas, alegando uma falha na distribuição e concordando em restituí-las.

Nesse meio tempo, porém, Weintraub criticou seminários sobre música e movimentos sociais, incitando seus seguidores contra a autonomia universitária. Seu irmão e assessor especial da presidência, Arthur Weintraub, mandou um estudante de Direitos Humanos se dedicar à carreira de confeiteiro, justificando que as bolsas seriam destinadas à Medicina, e diferenciou as áreas da saúde, úteis no combate ao coronavírus, da balbúrdia, agora especificada como Filosofia, História e Sociologia. Embora tenha cancelado a bolsa de um doutorando que está pesquisando o coronavírus, o ministro afirma que cortou estudos sobre funk proibidão em favor da saúde. Paralelamente, uma portaria havia removido as ciências humanas das prioridades de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com uma retificação após protestos; a Capes anunciou investimentos em pesquisas sobre epidemias; e o MEC destinou mais recursos para a residência médica, enfatizando a falsa dicotomia entre as áreas da saúde e o conhecimento das humanas e sociais.

Sem as ciências humanas e sociais, não é possível compreender o contexto que torna a população periférica, as empregadas domésticas e os trabalhadores autônomos mais expostos ao coronavírus, bem como elaborar políticas públicas para proteger a esses e outros cidadãos, como a política de renda emergencial. Sem essas áreas, não é possível compreender movimentos políticos pela emancipação dos trabalhadores, pessoas negras, mulheres, LGBTQ+, com deficiência, dentre outros grupos subalternizados. Não é possível identificar e entender como algoritmos reproduzem essas violências, ou como profissionais de saúde, estatisticamente, aplicam menos anestesia em pacientes negras durante o parto, e tampouco será possível intervir para reparar essas assimetrias de poder e violência.

Uma sociedade sem o conhecimento científico das áreas humanas e sociais é uma sociedade que não se vê, não se entende e não se aprimora; não se dedica à dimensão ética de suas interações, discursos e ações; não se emancipa politicamente; não zela pelo bem-estar e cidadania dos sujeitos que a constituem. A quem interessa essa sociedade desumana?

Lucianna Furtado, Doutoranda em Comunicação (PPGCOM-UFMG)



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